Bem vindos a Infâmia.

Surgido da necessidade pessoal ou de uma compulsão não explicada, esse é um espaço reservado a todos que queiram dividir seus textos com o público (ou não). Apenas um local de expressão pseudo literária.

domingo, 18 de julho de 2010

Para Elise




Manhã de sol fraco, céu cinza, vento ameno.
Olha pela janela da sacada do apartamento sem grandes pretensões. O silêncio não me incomoda mais.
Essa é a primeira vez que percebo o quanto esse apartamento é vazio. Sem móveis, sem carpete, quadros ou qualquer outra referência a gostos e tendências. Apenas paredes brancas para todos os lados, roupas sujas e amassadas jogada pelos cantos, um cinzeiro transbordando e garrafas vazias de vinho recostadas em um canto da parede. A única coisa que destoava era o colchão no meio da sala e ela.
Minha garganta esta muito seca. Vou para a cozinha com cuidado para não acordá-la. Geladeira vazia, restos de comida chinesa em caixinhas de papel. E a ultima garrafa de Casillero Del Diablo pela metade. Perfeito. Levo a garrafa para a sala e me sento no canto onde o sol ilumina com preguiça e sem força. Permaneço a observá-la.
Ela dorme um sono profundo. Sua pele se arrepia pelo vento frio da manhã que passa pela fresta da janela. Em um esforço malembe, ela desliza o braço para cima do seu rosto, protegendo as linhas de seu rosto que a luz do sol insiste em persegui-la a essa hora. “Preciso comprar cortinas”.
Um gole no gargalo da garrafa ajuda a descer o pigarro. Incrível como as curvas do lençol de seda criam um brilho nessa luz. Quem eu quero enganar? O lençol em cima de seu corpo desnudo cria um espetáculo de beleza e sensualidade. Sonhos juvenis retornam a memória de um homem velho. Um sorriso me escapa no canto da boca.
Lentamente ela se espreguiça e se vira debruço no colchão. O cabelo é um espetáculo único. Ele cai ao lado do pescoço deixando visíveis as linhas do ombro e uma pequena parte da orelha. Procuro conter o riso. Incrível o que um lóbulo beijado com suavidade pode provocar.
A noite fora curta demais para uma espera que havia sido longa demais. Nunca pensei que voltaria a me sentir assim novamente. Livre. Solto. Indeciso. Como dizia a canção na Rádio da noite anterior: “seus olhos não são verdes, mas tem a profundidade de um oceano”.
Que beijos. Nunca mais haverá beijos como os de Elise Meyer. A forma como encaixara os quadris em meu corpo parecia que ela havia nascido ali, uma simetria perfeita. O debater dos corpos, o suor, angústias e frustrações extravasadas, mentes jogadas para dentro de um lugar escuro, quente e acolhedor. Corações e mentes aceleradas em um momento em que lágrimas vertem pela mera percepção do Nirvana. A anulação do Eu. Não era paixão. Era plenitude. Sua voz rouca desfalecia como notas de uma canção a muito perdida.
Dormimos abraçados por um sono profundo. Eramos uma flor de lótus que se fechara ao mundo ao invés de abrir.
Olho novamente para seu corpo debaixo dos lençóis de seda. Tomo mais um gole da boca da garrafa. Essas são memórias que vão me perseguir através dos tempos, entre nuvens e sonhos juvenis como uma diáfana percepção da realidade. O sol passa a brilhar com mais intensidade dentro da sala do apartamento, mostrando que ele também sobrevive em tempos nublados.
Ela abre os olhos lentamente, incomodada pela claridade, sorriso no canto da boca.
_Vem... me abraça.



O Conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

3 Fotos de Viagem

Eu tinha 19 anos na época. Estava trabalhando no Japão em uma fabrica de azulejos, carregando caixas o dia inteiro. Havia acabado de terminar o ensino médio e sentia que precisava conhecer o mundo antes de encarar a faculdade. Loucuras de gente jovem.
Ao chegar lá, o novo empregador me levou para conhecer o meu apartamento. Teria que dividir com um senhor de idade que já trabalhava na firma a muito tempo.
Quando eu avistei o suposto apartamento, tive que fazer força para não mostrar a decepção. O prédio era um barracão de madeira de dois andares com ar de muito antigo. As madeiras estavam podres e descascadas. O barulho do ranger das tabuas ecoava por toda a estrutura enquanto se caminhava no corredor lateral e mesmo de dia o som se tornava sinistro para as pessoas que entravam a primeira vez.
A noite chegara e depois de um dia de trabalho pesado a única coisa que me vinha na cabeça era um bom banho quente na banheira e dormir pesado depois da janta. O cobertor grosso parecia ser o local mais confortável do mundo naquela noite fria.
Eu sentia algo me prendendo aquela noite. O sono pesado me impedia de ter uma reação mais forte, estava me sentindo meio tonto e os olhos não conseguiam abrir. Quando consegui me libertar, percebi que estava molhado de suor, algo totalmente incoerente, pois dentro do quarto fazia um frio congelante que doía os ossos.
Quando virei o rosto para a penumbra próxima a baixa claridade que entrava pelas frestas da janela, um homem me observava com os olhos arregalados. Ele tinha uma fraca transparência azulada em volta. Eu não consegui reagir, uma mistura de estranheza e assombro. Sua boca se abria e como se ele tivesse gritando de desespero, mas nenhum som era emitido. Ele passou correndo por cima de mim e atravessou a parede.
Passaram-se alguns momentos enquanto eu tentava refletir sobre o que eu tinha visto. Talvez eu apenas estivesse sonolento, alguns instantes depois eu tive a certeza de que estava sonolento e sonhando meio acordado, devia ser apenas um pesadelo. Muito tempo longe de casa acaba acontecendo isso mesmo. Voltei para debaixo do cobertor e alguns momentos depois cai novamente no sono, desta vez mais tranqüilo.
Havia nevado durante a noite toda. O chefe da equipe apareceu duas horas mais cedo para nos chamar, tínhamos que colocar as correntes nos pneus da Van e sair uma hora mais cedo para não nos atrasarmos. Com a neve os carros sempre andavam em velocidade reduzida. Quando batemos na porta do motorista da Van, que ficava ao lado do nosso apartamento, ninguém respondia. Foram várias vezes gritando e tocando a campainha e mesmo assim não tínhamos resposta nenhuma. Depois de uns vinte e cinco minutos e muito soco naquela porta velha e descascada decidimos ir direto para a Van onde conseguiríamos ajeitar as coisas com a chave reserva e depois nós voltaríamos para tentar acordar o preguiçoso de novo.
Foi uma grande surpresa quando descobrimos que Nagata san, o motorista, estava dormindo dentro da van com seus cobertores e o ar quente ligado.
_ O que você ta fazendo ai? Tá louco? Nesse frio e você dormindo dentro da Van?
_ Eu não volto mais para aquele apartamento. De jeito nenhum.
_ Nagata o que foi que aconteceu?
_ Um homem transparente passou correndo da parece do seu apartamento, atravessou o meu quarto e passou pela parede do outro lado. Deus me livre. Esse lugar é assombrado.
Todos tiveram um acesso de riso descontrolados. Todos, menos eu. Senti um calafrio terrível no mesmo instante. Não era um sonho. Não podia ser um sonho. A lógica deixara um espaço sombrio em minha mente. Não podia ser coincidência duas pessoas terem sonhos complementares. Isso começara a encher minha cabeça com uma enxurrada de idéias para explicar o ocorrido, uma explicação pior do que a outra.
Nos dias que se seguiram, várias coisas estranhas começaram a ocorrer dentro do meu apartamento. Objetos diversos aparecendo em lugares diferentes aos que eu havia deixado, pratos que se quebravam sozinhos na cozinha, aparelhos que ligavam e desligavam sozinhos. O senhor que dividia o quarto comigo disse que aquilo era coisa da minha cabeça, mas ele mesmo veio brigar comigo quando o vidro de perfume dele havia sumido e reapareceu quebrado dentro da mala dele.
Pedi para que Nagata, único entre os brasileiros que falava japonês com fluência, ir comigo pesquisar sobre o prédio e aquele lugar onde estávamos. Fomos à biblioteca da cidade onde ficavam os arquivos municipais. Não havia muita documentação. Segundo a funcionária, a maior parte dos documentos foram todos destruídos nos bombardeios que os japoneses sofreram ao final da segunda guerra. Haviam sobrados apenas alguns álbuns de fotos antigas, sua maior parte de doações de famílias que conseguiram (ou não) sobreviver aos ataques norte americano.
Quando voltamos para frente dos apartamentos. Havia um grupo de senhoras bem idosas conversando em frente a um portão em uma casa um pouco mais a adiante. Arrastei o Nagata para conversarmos com as senhoras. Ele não queria ir de jeito nenhum, sabia que brasileiros eram mal vistos de qualquer forma no Japão. E pior do que brasileiros invadindo terras japonesas eram brasileiros loucos de pedra, falando loucuras sobre fantasmas, invadindo terras japonesas. Eu particularmente já não estava ligando para isso.
Quando nos apresentamos, as senhoras olharam desconfiadas. Perguntamos a quanto tempo moravam ali e quase todas nunca tinham saído da região. Quando começamos a falar sobre acontecimentos estranhos no conjunto de apartamentos, todas viraram as costas e saíram andando para dentro de suas casas sérias, sem darem uma brecha para uma outra pergunta. Apenas uma senhora nos ficou fitando. As pálpebras enrugadas e caídas mal permitia que nós víssemos o branco de seu olhos. Foi um breve momento, muito breve, mas tive a impressão de que seus velhos olhos se umedeceram. Não dava para ter certeza.
A velha anciã nos fez sinal para entrar. Tiramos os sapatos como de costume e nos ajoelhamos em frente à pequena mesa no centro da sala. Ficamos a sós por alguns momentos, quando ela apareceu trazendo uma bandeja com uma tigelinha de amendoim e dois copos de chá quente.
Quando ela começou a falar, Nagata ia traduzindo aos poucos para que eu pudesse acompanhar o desenrolar da história.
_ “A senhora Makia morava naquele terreno a muitos anos. Ela era uma menina quando a guerra estourou. Quando aconteceu o grande bombardeio na região de Nagoya, ela foi arrastada pelo pai para um abrigo anti bombas que ficava algumas quadras dali. Quando o seu pai percebeu que a esposa e o filho pequeno não estavam no abrigo, ele voltou para tentar resgatá-las. Mas foi tarde demais.”
Nesse momento Nagata começou a chorar silenciosamente. Ele não conseguia mais falar e a velha senhora continuava com um tom de melancolia que não fazia parte de seu idioma.
_ “Quando voltou ao lugar onde antes era a casa de seus pais, havia apenas destroços em cima de destroços. Sua sobrevivência nos anos que se seguiram só havia sido possível por ela ter ido morar com uma tia por uns dois anos e depois ter feito um “miai”, um casamento arranjado uns 3 anos depois.” Nagata virou para mim, meio acabrunhado e disse:
_ Você deve entender que o casamento era arranjado e não se ligava muito para idade nessa época. Quem tinha dinheiro tentava viver à custa das pessoas que tinham conseguido sobreviver a esses primeiros anos do pós-guerra. Ela se casou com 11 anos.
Engoli aquela informação a seco. A senhora Makia continuou e Nagata tomou fôlego para continuar a traduzir para mim.
_ “Ela passou a morar com o marido na cidade de Ashikaga, na província de Toshigue-ken ao norte de Tóquio. 25 anos haviam se passado quando o marido dela faleceu de problemas no coração. Com dinheiro do marido falecido ela voltou para morar na região onde tinha nascido, mas estava tudo mudado. Onde antes era uma fazenda de plantação de arroz, agora ficava o prédio de condomínios onde nós estamos morando.”
_ Desculpe interromper, Makia sama, mas o que isso tem haver com as aparições e coisas estranhas que estão acontecendo por lá?
Eu fui muito grosseiro, mas ela parece ter entendido a pergunta sem que Nagata precisasse traduzir. Ela colocou uma caixa preta de madeira toda decorada com entalhes dourados formando o desenho de uma velha cerejeira em cima da pequena mesa de centro. Ao abrir, eu senti o mesmo arrepio aterrorizante da noite da aparição. Dentro da caixa havia fotos amareladas antigas. Ela não precisou dizer mais nada. Nas fotos aparecia ela com a mãe, o irmão pequeno e o pai. Era o pai que nós tínhamos visto naquela noite. Havia outra foto foi mais desconcertante. Era a foto dele com o uniforme militar que nós tínhamos visto ele usando.



O medo tomou conta, tanto de mim quanto de Nagata que tinha perdido a fala e começara a tremer. Nisso a senhora Makia ofereceu duas xícaras de chá quente. Quando conseguimos parar de tremer ela continuou a falar e Nagata a traduzir.
_ “Ela procurou descobrir se havia alguma pista dos corpos das pessoas que moravam ali. E descobriu que o governo local da época apenas mandou passar tratores passarem por cima e jogar terra. Ela tentou conseguir uma autorização da prefeitura a uns 10 anos para realizar escavações em busca dos corpos de sua família, mas já haviam construído esses prédios e o governo local não iria permitir isso, pois se ela encontrasse evidencias de que o terreno era da família dela, a prefeitura deveria pagar indenização a sua única herdeira.” Nagata tomou fôlego e continuou.
_ “Desde que ela passou a morar aqui, as aparições começaram a acontecer dentro dos apartamentos. Cada vez mais freqüentes e cada vez mais fortes. Foi difícil para os donos do prédio conseguirem inquilinos que morassem ali. E ele passou a alugar para trabalhadores brasileiros.”



_ Agora eu entendo por que o nosso aluguel era tão barato. Disse para Nagata com um tom indignação. _ Vamos embora hoje daquele lugar!
Nesse momento, a velha senhora puxou outra caixa de madeira um pouco maior e abriu para nós. Havia uma enorme quantidade de dinheiro lá dentro. Eu troquei olhares com Nagata sem entender o que significava isso. Ela começou a falar e o queixo de Nagata pareceu ir ao chão. Ele virou balbuciando para mim, ainda sem acreditar no que ela havia dito.
_ Ela disse que se nós a ajudarmos a encontrar os restos mortais do pai dela ou algo pessoal da família dela, ela da essa caixa de dinheiro para a gente.
_Hahahaha... Você tá brincando? A gente nem vai entrar lá mais. Não obrigado.
_ Ricardo, tem quase um milhão de ienes ali.
Eu parei de rir. Um milhão de ienes significava meio milhão para cada um. E com meio milhão eu não só pagava as minhas contas no Brasil como poderia voltar para estudar e fazer faculdade sem ficar me preocupando com dinheiro. Tive que respirar fundo e pensar. Aquilo significava voltar mais cedo para casa, ver família e amigos novamente.
_ Mesmo que nós aceitássemos, como faríamos isso? Se a prefeitura proibiu isso, basta eu dar uma picaretada do lado de fora do prédio que a policia aparece para me extraditar de volta para o Brasil sem chance de defesa.
Nagata havia traduzido o que eu disse para ela e sem alterar a voz, a velha senhora se pois a falar.
_”O prédio tem dois andares e é uma construção de madeira muito antiga. Ela disse que as madeiras do chão do térreo são soltas e por baixo é solo de terra. Se nós tirarmos as tatames de palha do chão, podemos remover as tábuas de madeira e cavar por baixo de nossos apartamentos.” Nagata parecia estar bêbado agora. Eu não podia culpá-lo. Essa era com certeza a proposta mais bizarra que alguém já havia feito para mim. O velho Nagata até estava com os olhos maiores quando olhava a caixa de dinheiro.
_ Shoto mate okudassai, Obassama. (Um momento, por favor senhora).
_ Ricardo. Nós podemos fazer isso. -Disse ele sem tirar o olho do dinheiro- Ela só precisa de uma prova, qualquer coisa que nós encontrarmos ali vai ser lucro. Nós começamos a desmontar o meu apartamento e cavamos por lá. E quando nós...
_ Espera ai gênio! E onde o senhor pensa em dormir com o seu apartamento sem chão?
_ No seu apartamento, oras!
Eu já estava xingando ele de vadia por largar tudo que o estava incomodando por dinheiro. Agora eu tinha certeza: ele era praticamente uma vadia velha folgada. A senhora Makia tornou a falar e Nagata a traduzir.
_ ”Ela não se preocupa com provas de que o terreno é da família dela. Ela apenas gostaria de achar algo que pudesse enterrar em uma cerimônia religiosa fúnebre. Para tentar dar descanso a alma de seu pai.”
Pode parecer idiota, mas foi somente nesse momento que ela havia conseguido me convencer a aceitar esse pedido bizarro.
Na tarde seguinte, depois que voltamos do trabalho, demos inicio ao plano. Tiramos todos os tatames de palha do apartamento de Nagata. Cheiravam a mofo e algo fedido como palha molhada ou algo do gênero. Fiquei espantado quando percebi que a fala da velha senhora era verdade. As tábuas do assoalho estavam soltas e não havia nenhum tipo de forração ou vedação por baixo da madeira era terra úmida e só. Levamos os tatames um a um para o lado de fora do corredor e deixamos encostados na parede. Quando o sindico veio, ele não fez muitos questionamentos. Era comum os moradores tirarem os colchões de palha que cobriam o chão de vez em quando para evitar o mofo e naquele caso parecia ninguém fazia aquilo a anos.
Quando escureceu trancamos o apartamento e Nagata foi com suas coisas para meu. O velho tinha reclamado de chamar o idiota do Nagata para dormir no nosso apartamento, mas eu havia argumentado que depois que fizéssemos a limpeza no apartamento dele, ele iria ajudar a fazer no nosso. O velho Yamada bufou contrariado, pegou suas coisas e foi para o Sunâco (uma espécie de boate que os operários iam para beber e ficar apalpando as imigrantes filipinas clandestinas), com certeza ele ia passar a noite por lá.
Depois da janta fomos dormir.
Acordamos com um tremor no apartamento inteiro. Nagata incrédulo gritou para mim “Terremoto, terremoto!”. Corremos para debaixo do batente da porta quando tudo parou. Tentamos sair para ver se havia acontecido um estrago maior no prédio. Mas a porta não abria. A chave parecia estar emperrada. Não conseguíamos entender o que estava acontecendo, quando olhamos para trás e aquele homem transparente nos observava de perto.
Meu coração disparou e eu tinha certeza que ia ter um infarto. Nagata desmaiou e ficou amontoado no cubículo que dava acesso a porta emperrando de vez a saída. FILHA DA...! FILHA DA...! Chutei o corpo do corno, mas aquela franga velha não acordava. Grudei de costas na parede sem me aproximar, tentando controlar a tremedeira do meu corpo e o coração que eu tinha certeza que ia sair pela boca.
A figura do pai da senhora Makia esticava os braços azulados transparentes, com uma cara de desespero, como se precisasse de ajuda. Eu não conseguia mover o meu corpo, ele não me obedecia mais, estava com todos os músculos do meu corpo duros de medo. Ele veio flutuando bem próximo de mim e eu senti o ar esfriar cada vez mais. Os calafrios não paravam de subir pela minha espinha. Ele não me tocou. Apenas movia a boca como se tentasse dizer algo sem soltar som algum, apontando os braços para a parede contrária do quarto, onde era o apartamento de Nagata. Subitamente ele olhou para trás, como se algo terrível estivesse chegando. E um forte clarão azulado irradiou-se dentro do apartamento fazendo com que ele desaparece-se novamente.
Depois disso, a chave destravou e tudo voltou ao normal. Demorei uns dez minutos para me recompor e tentar parar de tremer. Depois de conseguir me levantar e respirar fundo fui até o fundo do quarto observar. Não tinha acontecido nada de especial, era como se nada tivesse acontecido. Voltei para a porta e dei mais um chute na bunda do Nagata e ele não reagiu. Olhei o pulso dele e estava tudo bem, o cachorro ainda estava vivo. Fui até a torneira da pia, enchi uma jarra com água e joguei.
A cena foi engraçada apesar da situação. Ele deu um pulo dando gritinhos histéricos que nem uma menininha de voz fina, grudado na parede. Foi arrastando suas costas apoiadas na parede até chegarem a porta que estava destrancada. Ele rolou de costas no chão frio do corredor e depois saiu correndo e tropeçando nos tatames do apartamento dele que havíamos deixado encostados nas paredes do corredor.
Demorou uns 40 minutos para que a polícia trouxesse Nagata de volta para o apartamento. Quando eles pararam na frente eu estava sentado do lado de fora da entrada do corredor. A senhora Makia percebera que algo havia acontecido e veio do portão e sua casa para nos auxiliar. Ela segurou o braço de Nagata e o conduziu para o interior de sua casa. Eu os acompanhei.
Nagata fedia demais. Um cheiro terrível vinha de suas roupas;
_ O que aconteceu com você? Por onde esteve?
_ Eu não sei. Corri o máximo que pude. Quando não agüentei mais eu cai no chão para tomar fôlego. Foi quando os policiais vieram me perguntar se eu estava bem. E me trouxeram para cá depois de verem meus documentos.
_ Mas por que o mau cheiro?
_ Acho que eu me borrei todo... disse com a voz quase sumindo.
_ Como? Não entendi?
_ VOCÊ É SURDO? EU CAGUEI NAS CALÇAS! QUEM NÃO FARIA ISSO DEPOIS DAQUELA MERDA QUE NÓS PASSAMOS, PORRA!
_ Desculpe. Eu ainda estou tentando pensar no que aconteceu.
A velha senhora levou Nagata para o banheiro para que ele pudesse se lavar. Eu ainda tentava refletir sobre o ocorrido. Um pensamento veio a minha mente. Ele não queria nos atacar, estava querendo mostrar algo. Alguma coisa estava ali naquela parede, ou embaixo dela.
A senhora Makia apareceu novamente com uma xícara de chá quente e uma bandeja de doces coloridos. Agradeci, ela saiu e voltou trazendo edredons e cobertores para que pudéssemos passar a noite naquela sala. Ela poderia não saber o que havia acontecido conosco, mas sabia que seria difícil convencer Nagata a entrar de novo no apartamento naquela noite.
Veio a manhã seguinte. Fomos juntos ao apartamento pegar nossas coisas e uniformes para irmos trabalhar. Nagata não falava nada. Quando chegamos na van, os outros funcionários começaram a tirar sarro de nós dois.
_ Foi só o Nagata se mudar para o apartamento do Ricardo san, que a noitada foi ótima. A gente só ouvi os gritinhos de prazer dessa bicha velha.
_ Vai se ferrar. Disse seco Nagata.
A tarde veio. Voltamos depois de um dia intenso de trabalho na firma. Quando todos se despediram. Voltei para Nagata e disse:
_ Vamos, temos muito trabalho a fazer antes que escureça.
_ VOCÊ ESTA LOUCO?!?!?! EU NÃO VOU FAZER MAIS PORCARIA NENHUMA. AQUILO É COISA DO ALÉM. MACUMBA BRAVA. NEM QUE A VACA TUSSA EU ENTRO NAQUELE LUGAR.
_ Nem por meio milhão? Eu disse com um sorriso irônico.
_ Você tinha que dizer isso, né? Ele respirou fundo ergueu a cabeça e disse: Vamos lá!
Eu agora tinha certeza. Ele era pior que uma vadia de rua. Fazia qualquer coisa por dinheiro.
Quando entramos no apartamento pegamos as ferramentas e começamos tirar as tábuas que já se encontravam soltas. Havia um espaço de um metro e meio dali até o chão de terra. Coloquei uma roupa velha e começamos a cavar em silêncio. A cada momento parecia durar uma eternidade. Cavamos o mais rápido que podíamos, queríamos sair dali antes que escurecesse. Fiquei impressionado com a velocidade que Nagata pegava os baldes de terra e se livrava dela. Quando perguntei onde ele estava colocando toda aquela terra, ele disse que estava colocando no vão que havia entre o corredor lateral do prédio e a casa vizinha. Já havíamos cavado cerca de quase dois metros do chão e nada havia aparecido alem dos canos enterrados. Escureceu e não fazia sentido continuar. Foi quando as luzes se apagaram e um tremor intenso atingiu o apartamento. Eu estava no buraco e quando olhei para cima Nagata tinha desaparecido. Aposto que aquela franga estava correndo de novo em direção a cidade e tinha me abandonado ali. Estava tudo escuro um esqueleto podre surgiu no buraco ao meu lado.
Minha reação foi instantânea. Gritei e girei a pá com toda a força em direção aquela caveira podre. Não acertei nada, no lugar disso eu tinha arrebentado um cano que começou a espirrar água gelada com força. Enchendo o buraco com água e transformando em uma imensa poça de lama. O terror de estar no escuro numa poça de lama gelada com uma assombração rondando, me fez perceber que eu nunca mais iria ver minha família no Brasil. Comecei a perder toda a esperança de sair daquele lugar.
Eu tentei me apoiar nas laterais da parede do buraco e por mais força que eu fizesse, aquilo acabava se desmanchando em lama. O frio começava a me afetar mais que o medo, meu corpo não conseguia parar de tremer e eu comecei a ficar paralisado. Não tinha mais jeito. Era o meu fim.
Foi quando a água do cano parou de jorrar e a lama começou a se acalmar na altura de minhas coxas. A luz do apartamento voltara a acender e quando consegui olhar para cima e vi um vulto contra a luz, que parecia mais forte por causa da escuridão em que eu estava.
_ Ricardo! Você está bem?
_ Onde você estava Nagata?
_ Ué? Eu disse que ia ao banheiro! Aconteceu alguma coisa? Nossa?!?! Que lamaceira é essa?
_ Jura que você não ouviu nada? E a luz apagando?
_ Ouviu o que? Do que você esta falando? Como foi que o cano do reservatório estourou? Eu estou fora a...
Ele ficou sem voz. Apenas apontando o dedo para a parte do buraco que estava mais embaixo da parede que dividia nossos apartamentos. Quando me virei, a surpresa. Havia dois esqueletos incrustados na terra.
Eu escorreguei de susto na mesma hora. Fui engatinhando de costa no sentido contrário, olhando fixamente para os esqueletos sujos de lama e restos de um tecido podre que milagrosamente ainda cobriam os corpos. Eu não tinha visto por causa da escuridão. Provavelmente a água tinha retirado a terra em volta dos corpos. Eu nunca iria conseguir achar nada ali porque estava cavando para baixo e não para os lados.
_ Da para me tirar daqui?
_ É... aaaam... Claro! Vou pegar uma corda na van e já venho.
Quando eu ia dizer para ele não me deixar sozinho ali já era tarde demais. Ele já tinha desaparecido. Foi quando eu comecei a observar os esqueletos que estavam logo ali na minha frente. Não tinham cheiro de cadáver, apenas de terra molhada. Alguma coisa estava chamando a minha atenção, mas eu não conseguia raciocinar direito.
Quando eu respirei fundo por causa do frio que estava fazendo naquela droga de buraco comecei a entender o significado daqueles corpos. Eles eram os corpos da mãe e do irmão pequeno da senhora Makia. A posição em que se encontravam dava para tentar imaginar o que havia acontecido. O esqueleto maior estava sentado com as pernas cruzadas, abraçando o esqueleto menor, protegendo ele no colo. Apenas uns pedaços de tecido do velho quimono ainda restavam e quando eu parei para observar melhor percebi que os restos de tecido eram iguais aos tecidos dos quimonos decorados que apareciam nas fotos da senhora Makia.
O pai dela precisava de ajuda para salvar os restos de sua família e por isso não conseguia descansar em paz. Imagino que o tormento terrível era para ele tentar chegar o mais rápido possível ao porão da casa onde estava o resto de sua família, mas quando estava no meio do caminho ele não deve ter tido sorte. Os aviões norte americanos acabaram com aquela região, mesmo não sendo nenhum ponto militar importante ou que possuísse fabricas de grande porte. Foi um massacre da população civil em grande escala. Mais tarde nas últimas conversas que tive com a Makia san. Ela me contara que seu pai estava voltando do combate no Pacifico, um dos poucos que conseguiram retornar para casa naqueles últimos momentos da guerra.
Assim que Nagata voltou, ele jogou a corda me retirou dali. Chamamos a senhora Nagata para ela ver o que encontramos e quando ela viu começou a chorar e soluçar baixinho. Todos ficamos em silêncio.
Na manhã seguinte todas as redes locais estavam na porta do velho prédio de madeira para noticiar o achado. Veja a história no noticiário do meio dia:

“Corpos de família desaparecida ao final da guerra são encontrados por acidente na cidade de Obu-Shi, província de Aichi-ken, por causa de um acidente causado por um cano velho estourado de um antigo prédio. Autoridades devem fazer os exames de reconhecimento de possível familiar ainda vivo, mais detalhes na edição das 8:00h”

Medíocre. Mas era assim que deveria ser.
A ultima vez que tive contato com a Senhora Makia foi na cerimônia fúnebre que ela tinha feito para a mãe e seu irmão pequeno. Fiquei surpreso, porque mesmo ela morando sozinha, sua família era imensa. Ela havia me puxado para dentro de uma sala fechada para no local onde era o velório. De uma mesa grande abriu a gaveta com uma chave e retirou a caixa com o dinheiro. Olhei para ele baixei a cabeça, agradeci e empurrei a caixa de volta. Disse em meu japonês enrolado que era melhor ela cuidar de seu negócios e viver sua aposentadoria de forma mais sossegada. Ela sorriu. Retirou um envelope robusto do montante e disse em um português muito enrolado.
_ Para seus estudos, Ricarudo san! Gamba te, né!
_ Domo arigato, obassama.
Voltei para o Brasil ao final disso tudo. Minhas aventuras em terras distantes tinham me dado muita coisa importante. Principalmente a capacidade de me maravilhar com o desconhecido e a certeza de que mistérios fantásticos ainda estavam por serem descobertos. Quanto a Nagata, nunca mais o vi. Soube que ele pegou o dinheiro sem pensar duas vezes e foi morar no Sunaco, até onde o dinheiro conseguisse bancar.
Quando olhava o céu pela janela do Avião, tirei o envelope do bolso do paletó. Tinha dinheiro suficiente para eu poder estudar e entrar na faculdade. Havia algo que me chamara a atenção dentro envelope que eu não notara antes. Tinha 3 fotos antigas. Todas com mensagens de agradecimento. Uma da senhora Makia, outra da sua família com ela aparecendo pequena e a ultima foto de seu pai em uniforme militar, com o rifle do lado. O arrepio voltara a percorrer minha coluna novamente.


Eu e Nagata, em frente ao castelo de Nagóya, duas semanas antes do incidente.

O Conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Viva a infamia

Por um impulso incontrolável de escrever, sem nenhuma preocupação com a crítica literária. Abri esse espaço para todos. Independente do gênero literário e de qualquer outra classificação. Liberdade é a palavra de ordem.

Sejam todos bem vindo a infâmia.