Bem vindos a Infâmia.

Surgido da necessidade pessoal ou de uma compulsão não explicada, esse é um espaço reservado a todos que queiram dividir seus textos com o público (ou não). Apenas um local de expressão pseudo literária.

domingo, 1 de agosto de 2010

Memórias de Lisboa




Descia com tranqüilidade pela estreita ladeira da Rua do Salitre. Um domingo qualquer com ar gelado e poucas pessoas na rua. Aprendi a gostar do sotaque melodioso dessa gente. Poemas passaram a ter um gosto adocicado quando recitados em músicas e sarais desse lado do Atlântico. Depois de alguns anos eu percebi que a poesia era um aspecto genético da alma desse povo. A língua, a ternura na forma de se pronunciar as palavras, realmente passou a me comover na velhice.
Algumas janelas se fecham enquanto caminho. Claro. Não sou daqui. Se fosse, provavelmente estaria na missa dominical a essa hora da manhã. Mas o ato de caminhar é mais forte do que convenções sociais.
O ar frio intensifica a saudade de casa. Minha mãe me dera o livro de Hermann Hesse para ler enquanto estivesse fora. Algumas lágrimas vertiam quando pensava nessas coisas. Ela havia dito que esse livro significava muito para ela. Mostrava visões luminosas da infância, passagens e dúvidas da adolescência e as derrotas da vida adulta.
Não me lembro qual havia sido o início da conversa com ela, eu era apenas um menino que ainda corria os olhos por livros e me enclausurava em meus próprios pensamentos. Eu não gostava de dramas. Sempre tinha algo haver com perdas e derrotas e essas eram coisas que nunca faltaram em minha vida. Perguntei qual havia sido a pior derrota que ela já havia lido.
O olhar cansado de quem normalmente ria da inocência se maravilhava com as perguntas inesperadas desse fedelho curioso que não largava da barra de sua saia. Ela respirou fundo e olhou para a porta da cozinha, como se remexesse em pensamentos que estavam guardados na velha caixa de mogno, no fundo de seu guarda roupa.
_ Romeu e Julieta.
_ Sério?
_ Não... Claro que não.
Rimos juntos.
_ Não sei meu filho. Eu já li muita coisa. Demian foi um livro especial para mim. Eu havia lido justamente quando eu sai de Minas Gerais para vir para São Paulo. Não havia sido fácil.
Ela respirou profundamente e continuou. Parecia falar para si própria.
_ Precisava terminar a faculdade e conseguir emprego. A solidão dentro da cidade grande pode ser muito cruel às vezes. Era uma época triste. Muitos dos meus amigos haviam sido presos e levados na calada da noite, gente que dormia e não amanhecia. Vim terminar engenharia na FAAP.
Esperei ela continuar. Ela havia se perdido novamente no passado. Respirei fundo.
_ Demian então?
_ Se você se interessa por essas coisas, devia tentar O velho e o Mar de Hemingway.
Estava passando nesse momento em frente da Pensão 13 da Sorte e num relance conseguia ver a imponente fachada da embaixada da Espanha a uns quinze metros. Entrei na Avenida Liberdade e comecei a ir cada vez mais rápido. O vento frio que corria pelas densas árvores da avenida começara realmente a me incomodar. Queria chegar a Estação do Rossio antes do meio dia.
O sol enganava enquanto mantinha o passo firme com minhas lembranças. A melancolia de Demian em seu caminhar da vida, sempre com os olhos virados para uma musa do passado e a derrota do ser humano em suas mais profundas condições e convicções, figurados nos restos mortais de uma carcaça de peixe. É. Nunca vou conseguir concorrer com isso.
_ Sinto falta do Zebrão.
Aquela frase poderia ser qualquer coisa, quando retirada de seu contexto. Lembro que ela ainda continuava a falar para si própria.
_ Éramos grandes amigos. Quando ele foi preso. Muitos ficaram com medo de tentar procurá-lo. Após o AI-5, qualquer coisa podia ser interpretada errada e você... Ela abaixara os olhos procurando algo.
_ Quando eu cheguei aqui em São Paulo. Liguei para sua vó para avisar que havia tudo ocorrido bem na viagem. Foi quando ela me contou que o Zebrão havia sido preso. Chorei durante vários dias. Éramos pobres e não tínhamos ninguém com quem contar.
Acabo de passar em frente à Cafeteria Palladium e cruzar a calçada da Glória. Aumenta o movimento de pessoas nas ruas. Poderia pegar um metro daqui, mas acho que estou perto. Vejo a praça dos restauradores e a sensação de vazio volta calar minha boca e me deixar mais macambúzio do que antes. A arquitetura dos prédios são um espetáculo de encher os olhos e a limpeza das ruas impressiona. É nessas horas que eu percebo o quanto estou longe de casa.
Ainda consigo escutar sua voz em minha cabeça. Uma sombra do passado que insiste em falar quando a solidão me cala diante do mundo.
_ Havia se passado alguns meses quando recebi um telefonema da mãe do Zebrão no pensionato de meninas em que eu morava. Ela disse que finalmente tinha conseguido notícias dele de um delegado da cidade. Pediu para eu ir falar com ele.
_ E você foi? Você é louca?
_ Eu precisava ir...
_ E ai?
_ Ele havia sido transferido do quartel general do DOPS na rua Tutóia, que as pessoas chamavam de Tutóia Hilton, para a sede que ficava na praça Julio Prestes. Comprei um bolo na padaria Pólen na Lapa, alguns sonhos e tomei um ônibus para o centro da cidade. Meus joelhos tremiam. Não sabia o que podia acontecer, mas a inocência era mais forte.
_ E ai? Como você fez para entrar e não ficar por lá?
O movimento de transeuntes ficara cada vez mais intenso. Pessoas entrando e saindo da estação do Rossio. Entro no Largo do Duque de Cadaval e me sento nas mesas do lado de fora da cervejaria. O tempo continua frio, mas o sol brilha com força ao pino do meio dia. Peço uma Heineken e um Lombo de porco com canela e purê de maçã, que muitos indicavam ser a especialidade daquele lugar. Coloco a edição de O Labirinto da Solidão em cima da mesa e observo a multidão saindo em direção a Praça Dom Pedro IV, provavelmente em direção ao Teatro Nacional Maria II, soube que haveria uma apresentação de grupos folclóricos tradicionais as 13:30h. Retomo a pensar naquela conversa de muitos anos atrás.
Ela continuava firme em minhas lembranças.
_ Fui até a porta do prédio. Observei de um bar na praça que a entrada era na lateral do prédio. A frente estava praticamente vazia, apenas com dois camburões, um da polícia e o outro do exército. Muita gente. Entrava e saia por aquela entrada naquele dia. Fui andando com os olhos voltados para baixo, não conseguia encarar ninguém ali. Na recepção eu via uma multidão gritando agitada e várias pessoas sendo arrastadas por alguns soldados para fora quando comecei a me desesperar. Foi nesse instante que eu conheci a Heloisa.
_ Sério? Tinha que ser. Meu tom de ironia arrancara lhe risos.
Heloisa era o tipo de mulher que só seria possível em livros de aventura. Possuía a beleza das divas do cinema da década de 30. Na verdade ela me lembrava muito a Pagú, só que loira. Sotaque do interior de São Paulo e uma língua afiada. Segundo minha mãe, ela tinha acabado de se formar em direito na São Francisco, com performances notórias na OAB de São Paulo. Ela berrava sem parar com um homem gordo, um novato de camisa surrada e gravata afrouxada no pescoço que tentava barrar as pessoas ali.
_ Eu sou representante do OAB. Estou com um mandado de soltura para trinta dos vários estudantes que vocês prenderam alegando conspiração contra governo. Se o senhor encostar a mão em mim de novo eu vou te processar de tal forma que esse vai ser o seu último emprego com certeza. Disse Heloisa em um único fôlego para o gorducho.
_ Minha senhora, o delegado vai chegar aqui em algumas ho...
_ Deixa eu te contar uma coisinha, seu pracinha de merda, cinco dos estudantes da minha lista são filhos de militares de alta patente do comando sul. Me dá o seu nome e número de registro que eu vou falar diretamente com o Coronel Tavares Fonseca e você vai terminar seus dias catando bosta no curral da cavalaria em Brasília se tiver sorte.
Eu me peguei rindo sozinho quando o atendente veio trazer mais uma cerveja e o prato que eu havia pedido. Ele fez algum comentário, mas não dei atenção. O cheiro da carne de porco com aquele molho apimentado e adocicado ao mesmo tempo foi inebriante. Minha mãe iria adorar aquilo.
A piada ficava melhor quando eu me lembro das duas sentadas na mesma cozinha tempos atrás contando essa mesma história. Primeiro por que a Heloisa não conhecia nenhum comandante Tavares Fonseca. A sorte falou alto naquele momento. O delegado não se encontrava por que naquele dia ele tinha saído junto com outras diligências para uma prisão em massa de um congresso de estudantes que estava a acontecendo ilegalmente em um sítio na cidade de Ibiúna no interior de São Paulo. A lista de presos da Heloisa era de alguns estudantes calouros do direito que foram denunciados, tinham envolvimentos com os movimentos estudantis que atuavam na contestação ao regime da época. Peixes pequenos segundo ela. Ela olhou para minha mãe e a agarrou pelo braço.
_ Vocês não podem negar o direito de uma irmã visitar pobre irmão preso injustamente! Saiu ela gritando adentro do prédio.
Uma cena de insanidade completa. O desespero da minha mãe sem saber o que falar e nem porque ela estava sendo arrastada para dentro do prédio por uma mulher que ela nem conhecia. O atendente não sabia o que fazer e na indecisão permitia a entrada dela, minha mãe e mais três pessoas para dentro do corredor com paredes descascadas.
Eu parei para rir novamente. O movimento do das mesas ao meu redor se intensificava. O atendente veio me trazer mais uma cerveja, acho que era isso que ele estava falando comigo. Minha reação com minha mãe fora hilária.
_ VOCÊ ENTROU DENTRO DO PRÉDIO DO DOPS, COM A HELOISA SEGURANDO UM PAPEL QUE NÃO TINHA SIGNIFICADO NENHUM, PARA RETIRAR PRESOS POLÍTICOS EM PLENO 68? Minha cara de incrédulo e pasmo devia ser fantástica. Ela sorriu e continuou. Ela disse que a Heloisa estava possuída. Ganhava o Oscar fácil.
_ Quero os nomes da lista vocês vão esperar nessa sala e vamos trazê-los aqui para a soltura. Em meia hora vocês...
_ Qual é o seu nome e número de registro cabo?
_ Por quê?
_ Preciso anotar isso. A hora que eu perceber que os filhos do Coronel Tavares e seus amigos foram presos por engano, confundidos com elementos subversivos e maltratados dentro nesse pardieiro, eu vou precisar relatar em processo quem foi que demorou para libertar esses rapazes e as condições de maus tratos sofridos.
A famosa carteirada de advogado deve ter sido inventada por ela.
_ ALMEIDAAAA!!!
Um rapaz novo, de terno e camisa surrado entrou a passos rápidos na sala.
_ Sim senhor.
_ Traz esse bando de mer... estudantes para cá agora.
_ Eles estão no interro...
_ AGORA ALMEIDA.
_ Sim senhor.
Minha mãe levantou-se da mesa da cozinha e foi em direção ao fogão, pegou o bule e encheu o copo de café. Sentou-se e olhou novamente para o vazio. Ela não cansava de falar para si mesma, como um desabafo tardio ou apenas uma forma de não se esquecer. E eu não cansava de escutar suas histórias.
_ Heloisa se virara para mim e pedira para continuar em silêncio. Eu não conseguia soltar nenhuma palavra. Estava morrendo de medo. Pensei que ia desmaiar. Almeida voltara em dez minutos com doze pessoas para dentro daquela sala minúscula, dez homens e duas mulheres. Nunca vou esquecer o sotaque nordestino e o tom de voz rancorosa que aquele homem falara com a Helo.
_ Bom Dotora...?
_ Doutora Brigitte, por favor. Ela mentia descaradamente e voltara a assumir um ar de arrogância e superioridade que lhe parecia tão comum.
_ Bom doutora Brigite, entregue o seu papel aqui e assine as vias de soltura. Tenho certeza de que o engano será esclarecido sem maiores problemas com o Comandante Tavares.
_ Claro. Falou de forma ríspida e petulante. Virou-se para todos que estavam na sala e disse solenemente:
_ Existe um transporte esperando todos vocês lá fora. Todos andando. Vamos para casa. Nesse momento virou-se para mim e disse:
_ Marialva minha filha, ta esperando o que? Leva o teu irmão agora lá para o carro, já! Disse ela apontando para um dos rapazes que estava mancando quando veio andando trôpego, empurrado por Almeida.
_ Todos saímos pela porta principal. No momento em que todos estavam de fora, duas kombis azuis pararam rapidamente em frente a porta e empurraram todo o pessoal para dentro. Eu estava na segunda Kombi quando Heloisa viera correndo e gritando.
_ Corre macacada! Logo os meganha vão perceber o golpe e todo mundo vai se lascar. Bóra!
Era difícil acreditar que Heloisa, hoje juíza federal, falasse dessa forma e se metesse com esse tipo de coisa. Uma mulher fantástica, sem dúvida. Minha mãe contara que aquilo foi o golpe muito bem dado. Heloisa disse que havia agarrado o braço da minha mãe, pois a cara de aflição dela poderia convencer na hora. Sorte. Pura Sorte. O delegado responsável era o Matheus Puma. Figurinha carimbada da ditadura que gostava de violentar as detentas e arrancar as unhas dos outros presos com alicate. Se minha mãe ficasse ali, quando o delegado chegasse, era capaz dele querer aprontar para cima dela. Ironias a parte, hoje o filho da puta é deputado federal e tenta promover a todo custo o filho dele Puma filho. Mas o sádico estava feliz.
Mesmo com o plano de fuga idiota, a prisão dos estudantes no congresso secreto da UNE em Ibiúna, promoveu uma enorme propaganda do regime contra os “elementos subversivos” da nação. A maquina da repressão sorria com todos os dentes naquele mês de outubro.
Riamos muito disso. Quando perguntei sobre o Zebrão, ela me contou o final dessa História.
_ Ainda estava assustada dentro de Kombi que se deslocava em alta velocidade para a região da Zona Leste, quando perguntei em voz chorosa pelo Zebrão. O rapaz que saiu de lá mancando se aproximou de mim e me abraçou. Chorava copiosamente. Seus soluços fizeram com que eu o abraçasse de volta tentando acalmá-lo dizendo que o pior já havia passado. Ele disse que o Zebrão havia sido morto há dois dias. Estavam preparando o corpo para ser enterrado no cemitério da Vila Formosa, o Formosão como eles chamavam. Local onde os milicos davam fim para os corpos das pessoas mortas sob tortura nos porões do DOPS.
Foi nesse momento que eu vi os olhos cansados de minha mãe brilharem e marejarem. Seu amigo de infância havia sido morto por trabalhar numa padaria e se filiar ao sindicato dos padeiros na cidade de Belo Horizonte. Quando fora procurar ajuda do sindicato por problemas no pagamento do local onde trabalhava, o dono da padaria o denunciou as autoridades como um terrorista ligado ao movimento VPR. Sumiu sem deixar vestígios.
Em laudo oficial, a polícia soltou um memorando, dizendo que o Zebrão havia sido morto atropelado por um caminhão enquanto fugia de seus perseguidores.
A carne adocicada e apimentada desmanchava na boca. Meus colegas de Coimbra não mentiram. Essa era com certeza a carne de porco mais saborosa que eu já havia experimentado. E o purê de maçã dava um toque especial ao prato. O atendente não esperou eu pedir e trouxe a sobremesa: uma enorme tigela de fios de ovos com madalenas salpicadas de açúcar e canela.
Comi a bom gosto, paguei e voltei a caminhar em direção ao Teatro Maria II. O fado vindo da escadaria do teatro chamava uma pequena multidão de turistas para a sua porta. Já deviam ser mais de duas horas da tarde. Hoje era aniversário de minha mãe. Precisava sair para relembrar. Ao fundo a melodia do acordeom e do violoncelo tornava a voz da cantora cada vez mais sublime.
“_Ai que ninguém volta, ao que já passou, ninguém larga a grande roda, ninguém sabe onde e que andou”.

O conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.