Bem vindos a Infâmia.

Surgido da necessidade pessoal ou de uma compulsão não explicada, esse é um espaço reservado a todos que queiram dividir seus textos com o público (ou não). Apenas um local de expressão pseudo literária.

domingo, 1 de agosto de 2010

Memórias de Lisboa




Descia com tranqüilidade pela estreita ladeira da Rua do Salitre. Um domingo qualquer com ar gelado e poucas pessoas na rua. Aprendi a gostar do sotaque melodioso dessa gente. Poemas passaram a ter um gosto adocicado quando recitados em músicas e sarais desse lado do Atlântico. Depois de alguns anos eu percebi que a poesia era um aspecto genético da alma desse povo. A língua, a ternura na forma de se pronunciar as palavras, realmente passou a me comover na velhice.
Algumas janelas se fecham enquanto caminho. Claro. Não sou daqui. Se fosse, provavelmente estaria na missa dominical a essa hora da manhã. Mas o ato de caminhar é mais forte do que convenções sociais.
O ar frio intensifica a saudade de casa. Minha mãe me dera o livro de Hermann Hesse para ler enquanto estivesse fora. Algumas lágrimas vertiam quando pensava nessas coisas. Ela havia dito que esse livro significava muito para ela. Mostrava visões luminosas da infância, passagens e dúvidas da adolescência e as derrotas da vida adulta.
Não me lembro qual havia sido o início da conversa com ela, eu era apenas um menino que ainda corria os olhos por livros e me enclausurava em meus próprios pensamentos. Eu não gostava de dramas. Sempre tinha algo haver com perdas e derrotas e essas eram coisas que nunca faltaram em minha vida. Perguntei qual havia sido a pior derrota que ela já havia lido.
O olhar cansado de quem normalmente ria da inocência se maravilhava com as perguntas inesperadas desse fedelho curioso que não largava da barra de sua saia. Ela respirou fundo e olhou para a porta da cozinha, como se remexesse em pensamentos que estavam guardados na velha caixa de mogno, no fundo de seu guarda roupa.
_ Romeu e Julieta.
_ Sério?
_ Não... Claro que não.
Rimos juntos.
_ Não sei meu filho. Eu já li muita coisa. Demian foi um livro especial para mim. Eu havia lido justamente quando eu sai de Minas Gerais para vir para São Paulo. Não havia sido fácil.
Ela respirou profundamente e continuou. Parecia falar para si própria.
_ Precisava terminar a faculdade e conseguir emprego. A solidão dentro da cidade grande pode ser muito cruel às vezes. Era uma época triste. Muitos dos meus amigos haviam sido presos e levados na calada da noite, gente que dormia e não amanhecia. Vim terminar engenharia na FAAP.
Esperei ela continuar. Ela havia se perdido novamente no passado. Respirei fundo.
_ Demian então?
_ Se você se interessa por essas coisas, devia tentar O velho e o Mar de Hemingway.
Estava passando nesse momento em frente da Pensão 13 da Sorte e num relance conseguia ver a imponente fachada da embaixada da Espanha a uns quinze metros. Entrei na Avenida Liberdade e comecei a ir cada vez mais rápido. O vento frio que corria pelas densas árvores da avenida começara realmente a me incomodar. Queria chegar a Estação do Rossio antes do meio dia.
O sol enganava enquanto mantinha o passo firme com minhas lembranças. A melancolia de Demian em seu caminhar da vida, sempre com os olhos virados para uma musa do passado e a derrota do ser humano em suas mais profundas condições e convicções, figurados nos restos mortais de uma carcaça de peixe. É. Nunca vou conseguir concorrer com isso.
_ Sinto falta do Zebrão.
Aquela frase poderia ser qualquer coisa, quando retirada de seu contexto. Lembro que ela ainda continuava a falar para si própria.
_ Éramos grandes amigos. Quando ele foi preso. Muitos ficaram com medo de tentar procurá-lo. Após o AI-5, qualquer coisa podia ser interpretada errada e você... Ela abaixara os olhos procurando algo.
_ Quando eu cheguei aqui em São Paulo. Liguei para sua vó para avisar que havia tudo ocorrido bem na viagem. Foi quando ela me contou que o Zebrão havia sido preso. Chorei durante vários dias. Éramos pobres e não tínhamos ninguém com quem contar.
Acabo de passar em frente à Cafeteria Palladium e cruzar a calçada da Glória. Aumenta o movimento de pessoas nas ruas. Poderia pegar um metro daqui, mas acho que estou perto. Vejo a praça dos restauradores e a sensação de vazio volta calar minha boca e me deixar mais macambúzio do que antes. A arquitetura dos prédios são um espetáculo de encher os olhos e a limpeza das ruas impressiona. É nessas horas que eu percebo o quanto estou longe de casa.
Ainda consigo escutar sua voz em minha cabeça. Uma sombra do passado que insiste em falar quando a solidão me cala diante do mundo.
_ Havia se passado alguns meses quando recebi um telefonema da mãe do Zebrão no pensionato de meninas em que eu morava. Ela disse que finalmente tinha conseguido notícias dele de um delegado da cidade. Pediu para eu ir falar com ele.
_ E você foi? Você é louca?
_ Eu precisava ir...
_ E ai?
_ Ele havia sido transferido do quartel general do DOPS na rua Tutóia, que as pessoas chamavam de Tutóia Hilton, para a sede que ficava na praça Julio Prestes. Comprei um bolo na padaria Pólen na Lapa, alguns sonhos e tomei um ônibus para o centro da cidade. Meus joelhos tremiam. Não sabia o que podia acontecer, mas a inocência era mais forte.
_ E ai? Como você fez para entrar e não ficar por lá?
O movimento de transeuntes ficara cada vez mais intenso. Pessoas entrando e saindo da estação do Rossio. Entro no Largo do Duque de Cadaval e me sento nas mesas do lado de fora da cervejaria. O tempo continua frio, mas o sol brilha com força ao pino do meio dia. Peço uma Heineken e um Lombo de porco com canela e purê de maçã, que muitos indicavam ser a especialidade daquele lugar. Coloco a edição de O Labirinto da Solidão em cima da mesa e observo a multidão saindo em direção a Praça Dom Pedro IV, provavelmente em direção ao Teatro Nacional Maria II, soube que haveria uma apresentação de grupos folclóricos tradicionais as 13:30h. Retomo a pensar naquela conversa de muitos anos atrás.
Ela continuava firme em minhas lembranças.
_ Fui até a porta do prédio. Observei de um bar na praça que a entrada era na lateral do prédio. A frente estava praticamente vazia, apenas com dois camburões, um da polícia e o outro do exército. Muita gente. Entrava e saia por aquela entrada naquele dia. Fui andando com os olhos voltados para baixo, não conseguia encarar ninguém ali. Na recepção eu via uma multidão gritando agitada e várias pessoas sendo arrastadas por alguns soldados para fora quando comecei a me desesperar. Foi nesse instante que eu conheci a Heloisa.
_ Sério? Tinha que ser. Meu tom de ironia arrancara lhe risos.
Heloisa era o tipo de mulher que só seria possível em livros de aventura. Possuía a beleza das divas do cinema da década de 30. Na verdade ela me lembrava muito a Pagú, só que loira. Sotaque do interior de São Paulo e uma língua afiada. Segundo minha mãe, ela tinha acabado de se formar em direito na São Francisco, com performances notórias na OAB de São Paulo. Ela berrava sem parar com um homem gordo, um novato de camisa surrada e gravata afrouxada no pescoço que tentava barrar as pessoas ali.
_ Eu sou representante do OAB. Estou com um mandado de soltura para trinta dos vários estudantes que vocês prenderam alegando conspiração contra governo. Se o senhor encostar a mão em mim de novo eu vou te processar de tal forma que esse vai ser o seu último emprego com certeza. Disse Heloisa em um único fôlego para o gorducho.
_ Minha senhora, o delegado vai chegar aqui em algumas ho...
_ Deixa eu te contar uma coisinha, seu pracinha de merda, cinco dos estudantes da minha lista são filhos de militares de alta patente do comando sul. Me dá o seu nome e número de registro que eu vou falar diretamente com o Coronel Tavares Fonseca e você vai terminar seus dias catando bosta no curral da cavalaria em Brasília se tiver sorte.
Eu me peguei rindo sozinho quando o atendente veio trazer mais uma cerveja e o prato que eu havia pedido. Ele fez algum comentário, mas não dei atenção. O cheiro da carne de porco com aquele molho apimentado e adocicado ao mesmo tempo foi inebriante. Minha mãe iria adorar aquilo.
A piada ficava melhor quando eu me lembro das duas sentadas na mesma cozinha tempos atrás contando essa mesma história. Primeiro por que a Heloisa não conhecia nenhum comandante Tavares Fonseca. A sorte falou alto naquele momento. O delegado não se encontrava por que naquele dia ele tinha saído junto com outras diligências para uma prisão em massa de um congresso de estudantes que estava a acontecendo ilegalmente em um sítio na cidade de Ibiúna no interior de São Paulo. A lista de presos da Heloisa era de alguns estudantes calouros do direito que foram denunciados, tinham envolvimentos com os movimentos estudantis que atuavam na contestação ao regime da época. Peixes pequenos segundo ela. Ela olhou para minha mãe e a agarrou pelo braço.
_ Vocês não podem negar o direito de uma irmã visitar pobre irmão preso injustamente! Saiu ela gritando adentro do prédio.
Uma cena de insanidade completa. O desespero da minha mãe sem saber o que falar e nem porque ela estava sendo arrastada para dentro do prédio por uma mulher que ela nem conhecia. O atendente não sabia o que fazer e na indecisão permitia a entrada dela, minha mãe e mais três pessoas para dentro do corredor com paredes descascadas.
Eu parei para rir novamente. O movimento do das mesas ao meu redor se intensificava. O atendente veio me trazer mais uma cerveja, acho que era isso que ele estava falando comigo. Minha reação com minha mãe fora hilária.
_ VOCÊ ENTROU DENTRO DO PRÉDIO DO DOPS, COM A HELOISA SEGURANDO UM PAPEL QUE NÃO TINHA SIGNIFICADO NENHUM, PARA RETIRAR PRESOS POLÍTICOS EM PLENO 68? Minha cara de incrédulo e pasmo devia ser fantástica. Ela sorriu e continuou. Ela disse que a Heloisa estava possuída. Ganhava o Oscar fácil.
_ Quero os nomes da lista vocês vão esperar nessa sala e vamos trazê-los aqui para a soltura. Em meia hora vocês...
_ Qual é o seu nome e número de registro cabo?
_ Por quê?
_ Preciso anotar isso. A hora que eu perceber que os filhos do Coronel Tavares e seus amigos foram presos por engano, confundidos com elementos subversivos e maltratados dentro nesse pardieiro, eu vou precisar relatar em processo quem foi que demorou para libertar esses rapazes e as condições de maus tratos sofridos.
A famosa carteirada de advogado deve ter sido inventada por ela.
_ ALMEIDAAAA!!!
Um rapaz novo, de terno e camisa surrado entrou a passos rápidos na sala.
_ Sim senhor.
_ Traz esse bando de mer... estudantes para cá agora.
_ Eles estão no interro...
_ AGORA ALMEIDA.
_ Sim senhor.
Minha mãe levantou-se da mesa da cozinha e foi em direção ao fogão, pegou o bule e encheu o copo de café. Sentou-se e olhou novamente para o vazio. Ela não cansava de falar para si mesma, como um desabafo tardio ou apenas uma forma de não se esquecer. E eu não cansava de escutar suas histórias.
_ Heloisa se virara para mim e pedira para continuar em silêncio. Eu não conseguia soltar nenhuma palavra. Estava morrendo de medo. Pensei que ia desmaiar. Almeida voltara em dez minutos com doze pessoas para dentro daquela sala minúscula, dez homens e duas mulheres. Nunca vou esquecer o sotaque nordestino e o tom de voz rancorosa que aquele homem falara com a Helo.
_ Bom Dotora...?
_ Doutora Brigitte, por favor. Ela mentia descaradamente e voltara a assumir um ar de arrogância e superioridade que lhe parecia tão comum.
_ Bom doutora Brigite, entregue o seu papel aqui e assine as vias de soltura. Tenho certeza de que o engano será esclarecido sem maiores problemas com o Comandante Tavares.
_ Claro. Falou de forma ríspida e petulante. Virou-se para todos que estavam na sala e disse solenemente:
_ Existe um transporte esperando todos vocês lá fora. Todos andando. Vamos para casa. Nesse momento virou-se para mim e disse:
_ Marialva minha filha, ta esperando o que? Leva o teu irmão agora lá para o carro, já! Disse ela apontando para um dos rapazes que estava mancando quando veio andando trôpego, empurrado por Almeida.
_ Todos saímos pela porta principal. No momento em que todos estavam de fora, duas kombis azuis pararam rapidamente em frente a porta e empurraram todo o pessoal para dentro. Eu estava na segunda Kombi quando Heloisa viera correndo e gritando.
_ Corre macacada! Logo os meganha vão perceber o golpe e todo mundo vai se lascar. Bóra!
Era difícil acreditar que Heloisa, hoje juíza federal, falasse dessa forma e se metesse com esse tipo de coisa. Uma mulher fantástica, sem dúvida. Minha mãe contara que aquilo foi o golpe muito bem dado. Heloisa disse que havia agarrado o braço da minha mãe, pois a cara de aflição dela poderia convencer na hora. Sorte. Pura Sorte. O delegado responsável era o Matheus Puma. Figurinha carimbada da ditadura que gostava de violentar as detentas e arrancar as unhas dos outros presos com alicate. Se minha mãe ficasse ali, quando o delegado chegasse, era capaz dele querer aprontar para cima dela. Ironias a parte, hoje o filho da puta é deputado federal e tenta promover a todo custo o filho dele Puma filho. Mas o sádico estava feliz.
Mesmo com o plano de fuga idiota, a prisão dos estudantes no congresso secreto da UNE em Ibiúna, promoveu uma enorme propaganda do regime contra os “elementos subversivos” da nação. A maquina da repressão sorria com todos os dentes naquele mês de outubro.
Riamos muito disso. Quando perguntei sobre o Zebrão, ela me contou o final dessa História.
_ Ainda estava assustada dentro de Kombi que se deslocava em alta velocidade para a região da Zona Leste, quando perguntei em voz chorosa pelo Zebrão. O rapaz que saiu de lá mancando se aproximou de mim e me abraçou. Chorava copiosamente. Seus soluços fizeram com que eu o abraçasse de volta tentando acalmá-lo dizendo que o pior já havia passado. Ele disse que o Zebrão havia sido morto há dois dias. Estavam preparando o corpo para ser enterrado no cemitério da Vila Formosa, o Formosão como eles chamavam. Local onde os milicos davam fim para os corpos das pessoas mortas sob tortura nos porões do DOPS.
Foi nesse momento que eu vi os olhos cansados de minha mãe brilharem e marejarem. Seu amigo de infância havia sido morto por trabalhar numa padaria e se filiar ao sindicato dos padeiros na cidade de Belo Horizonte. Quando fora procurar ajuda do sindicato por problemas no pagamento do local onde trabalhava, o dono da padaria o denunciou as autoridades como um terrorista ligado ao movimento VPR. Sumiu sem deixar vestígios.
Em laudo oficial, a polícia soltou um memorando, dizendo que o Zebrão havia sido morto atropelado por um caminhão enquanto fugia de seus perseguidores.
A carne adocicada e apimentada desmanchava na boca. Meus colegas de Coimbra não mentiram. Essa era com certeza a carne de porco mais saborosa que eu já havia experimentado. E o purê de maçã dava um toque especial ao prato. O atendente não esperou eu pedir e trouxe a sobremesa: uma enorme tigela de fios de ovos com madalenas salpicadas de açúcar e canela.
Comi a bom gosto, paguei e voltei a caminhar em direção ao Teatro Maria II. O fado vindo da escadaria do teatro chamava uma pequena multidão de turistas para a sua porta. Já deviam ser mais de duas horas da tarde. Hoje era aniversário de minha mãe. Precisava sair para relembrar. Ao fundo a melodia do acordeom e do violoncelo tornava a voz da cantora cada vez mais sublime.
“_Ai que ninguém volta, ao que já passou, ninguém larga a grande roda, ninguém sabe onde e que andou”.

O conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

domingo, 18 de julho de 2010

Para Elise




Manhã de sol fraco, céu cinza, vento ameno.
Olha pela janela da sacada do apartamento sem grandes pretensões. O silêncio não me incomoda mais.
Essa é a primeira vez que percebo o quanto esse apartamento é vazio. Sem móveis, sem carpete, quadros ou qualquer outra referência a gostos e tendências. Apenas paredes brancas para todos os lados, roupas sujas e amassadas jogada pelos cantos, um cinzeiro transbordando e garrafas vazias de vinho recostadas em um canto da parede. A única coisa que destoava era o colchão no meio da sala e ela.
Minha garganta esta muito seca. Vou para a cozinha com cuidado para não acordá-la. Geladeira vazia, restos de comida chinesa em caixinhas de papel. E a ultima garrafa de Casillero Del Diablo pela metade. Perfeito. Levo a garrafa para a sala e me sento no canto onde o sol ilumina com preguiça e sem força. Permaneço a observá-la.
Ela dorme um sono profundo. Sua pele se arrepia pelo vento frio da manhã que passa pela fresta da janela. Em um esforço malembe, ela desliza o braço para cima do seu rosto, protegendo as linhas de seu rosto que a luz do sol insiste em persegui-la a essa hora. “Preciso comprar cortinas”.
Um gole no gargalo da garrafa ajuda a descer o pigarro. Incrível como as curvas do lençol de seda criam um brilho nessa luz. Quem eu quero enganar? O lençol em cima de seu corpo desnudo cria um espetáculo de beleza e sensualidade. Sonhos juvenis retornam a memória de um homem velho. Um sorriso me escapa no canto da boca.
Lentamente ela se espreguiça e se vira debruço no colchão. O cabelo é um espetáculo único. Ele cai ao lado do pescoço deixando visíveis as linhas do ombro e uma pequena parte da orelha. Procuro conter o riso. Incrível o que um lóbulo beijado com suavidade pode provocar.
A noite fora curta demais para uma espera que havia sido longa demais. Nunca pensei que voltaria a me sentir assim novamente. Livre. Solto. Indeciso. Como dizia a canção na Rádio da noite anterior: “seus olhos não são verdes, mas tem a profundidade de um oceano”.
Que beijos. Nunca mais haverá beijos como os de Elise Meyer. A forma como encaixara os quadris em meu corpo parecia que ela havia nascido ali, uma simetria perfeita. O debater dos corpos, o suor, angústias e frustrações extravasadas, mentes jogadas para dentro de um lugar escuro, quente e acolhedor. Corações e mentes aceleradas em um momento em que lágrimas vertem pela mera percepção do Nirvana. A anulação do Eu. Não era paixão. Era plenitude. Sua voz rouca desfalecia como notas de uma canção a muito perdida.
Dormimos abraçados por um sono profundo. Eramos uma flor de lótus que se fechara ao mundo ao invés de abrir.
Olho novamente para seu corpo debaixo dos lençóis de seda. Tomo mais um gole da boca da garrafa. Essas são memórias que vão me perseguir através dos tempos, entre nuvens e sonhos juvenis como uma diáfana percepção da realidade. O sol passa a brilhar com mais intensidade dentro da sala do apartamento, mostrando que ele também sobrevive em tempos nublados.
Ela abre os olhos lentamente, incomodada pela claridade, sorriso no canto da boca.
_Vem... me abraça.



O Conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

3 Fotos de Viagem

Eu tinha 19 anos na época. Estava trabalhando no Japão em uma fabrica de azulejos, carregando caixas o dia inteiro. Havia acabado de terminar o ensino médio e sentia que precisava conhecer o mundo antes de encarar a faculdade. Loucuras de gente jovem.
Ao chegar lá, o novo empregador me levou para conhecer o meu apartamento. Teria que dividir com um senhor de idade que já trabalhava na firma a muito tempo.
Quando eu avistei o suposto apartamento, tive que fazer força para não mostrar a decepção. O prédio era um barracão de madeira de dois andares com ar de muito antigo. As madeiras estavam podres e descascadas. O barulho do ranger das tabuas ecoava por toda a estrutura enquanto se caminhava no corredor lateral e mesmo de dia o som se tornava sinistro para as pessoas que entravam a primeira vez.
A noite chegara e depois de um dia de trabalho pesado a única coisa que me vinha na cabeça era um bom banho quente na banheira e dormir pesado depois da janta. O cobertor grosso parecia ser o local mais confortável do mundo naquela noite fria.
Eu sentia algo me prendendo aquela noite. O sono pesado me impedia de ter uma reação mais forte, estava me sentindo meio tonto e os olhos não conseguiam abrir. Quando consegui me libertar, percebi que estava molhado de suor, algo totalmente incoerente, pois dentro do quarto fazia um frio congelante que doía os ossos.
Quando virei o rosto para a penumbra próxima a baixa claridade que entrava pelas frestas da janela, um homem me observava com os olhos arregalados. Ele tinha uma fraca transparência azulada em volta. Eu não consegui reagir, uma mistura de estranheza e assombro. Sua boca se abria e como se ele tivesse gritando de desespero, mas nenhum som era emitido. Ele passou correndo por cima de mim e atravessou a parede.
Passaram-se alguns momentos enquanto eu tentava refletir sobre o que eu tinha visto. Talvez eu apenas estivesse sonolento, alguns instantes depois eu tive a certeza de que estava sonolento e sonhando meio acordado, devia ser apenas um pesadelo. Muito tempo longe de casa acaba acontecendo isso mesmo. Voltei para debaixo do cobertor e alguns momentos depois cai novamente no sono, desta vez mais tranqüilo.
Havia nevado durante a noite toda. O chefe da equipe apareceu duas horas mais cedo para nos chamar, tínhamos que colocar as correntes nos pneus da Van e sair uma hora mais cedo para não nos atrasarmos. Com a neve os carros sempre andavam em velocidade reduzida. Quando batemos na porta do motorista da Van, que ficava ao lado do nosso apartamento, ninguém respondia. Foram várias vezes gritando e tocando a campainha e mesmo assim não tínhamos resposta nenhuma. Depois de uns vinte e cinco minutos e muito soco naquela porta velha e descascada decidimos ir direto para a Van onde conseguiríamos ajeitar as coisas com a chave reserva e depois nós voltaríamos para tentar acordar o preguiçoso de novo.
Foi uma grande surpresa quando descobrimos que Nagata san, o motorista, estava dormindo dentro da van com seus cobertores e o ar quente ligado.
_ O que você ta fazendo ai? Tá louco? Nesse frio e você dormindo dentro da Van?
_ Eu não volto mais para aquele apartamento. De jeito nenhum.
_ Nagata o que foi que aconteceu?
_ Um homem transparente passou correndo da parece do seu apartamento, atravessou o meu quarto e passou pela parede do outro lado. Deus me livre. Esse lugar é assombrado.
Todos tiveram um acesso de riso descontrolados. Todos, menos eu. Senti um calafrio terrível no mesmo instante. Não era um sonho. Não podia ser um sonho. A lógica deixara um espaço sombrio em minha mente. Não podia ser coincidência duas pessoas terem sonhos complementares. Isso começara a encher minha cabeça com uma enxurrada de idéias para explicar o ocorrido, uma explicação pior do que a outra.
Nos dias que se seguiram, várias coisas estranhas começaram a ocorrer dentro do meu apartamento. Objetos diversos aparecendo em lugares diferentes aos que eu havia deixado, pratos que se quebravam sozinhos na cozinha, aparelhos que ligavam e desligavam sozinhos. O senhor que dividia o quarto comigo disse que aquilo era coisa da minha cabeça, mas ele mesmo veio brigar comigo quando o vidro de perfume dele havia sumido e reapareceu quebrado dentro da mala dele.
Pedi para que Nagata, único entre os brasileiros que falava japonês com fluência, ir comigo pesquisar sobre o prédio e aquele lugar onde estávamos. Fomos à biblioteca da cidade onde ficavam os arquivos municipais. Não havia muita documentação. Segundo a funcionária, a maior parte dos documentos foram todos destruídos nos bombardeios que os japoneses sofreram ao final da segunda guerra. Haviam sobrados apenas alguns álbuns de fotos antigas, sua maior parte de doações de famílias que conseguiram (ou não) sobreviver aos ataques norte americano.
Quando voltamos para frente dos apartamentos. Havia um grupo de senhoras bem idosas conversando em frente a um portão em uma casa um pouco mais a adiante. Arrastei o Nagata para conversarmos com as senhoras. Ele não queria ir de jeito nenhum, sabia que brasileiros eram mal vistos de qualquer forma no Japão. E pior do que brasileiros invadindo terras japonesas eram brasileiros loucos de pedra, falando loucuras sobre fantasmas, invadindo terras japonesas. Eu particularmente já não estava ligando para isso.
Quando nos apresentamos, as senhoras olharam desconfiadas. Perguntamos a quanto tempo moravam ali e quase todas nunca tinham saído da região. Quando começamos a falar sobre acontecimentos estranhos no conjunto de apartamentos, todas viraram as costas e saíram andando para dentro de suas casas sérias, sem darem uma brecha para uma outra pergunta. Apenas uma senhora nos ficou fitando. As pálpebras enrugadas e caídas mal permitia que nós víssemos o branco de seu olhos. Foi um breve momento, muito breve, mas tive a impressão de que seus velhos olhos se umedeceram. Não dava para ter certeza.
A velha anciã nos fez sinal para entrar. Tiramos os sapatos como de costume e nos ajoelhamos em frente à pequena mesa no centro da sala. Ficamos a sós por alguns momentos, quando ela apareceu trazendo uma bandeja com uma tigelinha de amendoim e dois copos de chá quente.
Quando ela começou a falar, Nagata ia traduzindo aos poucos para que eu pudesse acompanhar o desenrolar da história.
_ “A senhora Makia morava naquele terreno a muitos anos. Ela era uma menina quando a guerra estourou. Quando aconteceu o grande bombardeio na região de Nagoya, ela foi arrastada pelo pai para um abrigo anti bombas que ficava algumas quadras dali. Quando o seu pai percebeu que a esposa e o filho pequeno não estavam no abrigo, ele voltou para tentar resgatá-las. Mas foi tarde demais.”
Nesse momento Nagata começou a chorar silenciosamente. Ele não conseguia mais falar e a velha senhora continuava com um tom de melancolia que não fazia parte de seu idioma.
_ “Quando voltou ao lugar onde antes era a casa de seus pais, havia apenas destroços em cima de destroços. Sua sobrevivência nos anos que se seguiram só havia sido possível por ela ter ido morar com uma tia por uns dois anos e depois ter feito um “miai”, um casamento arranjado uns 3 anos depois.” Nagata virou para mim, meio acabrunhado e disse:
_ Você deve entender que o casamento era arranjado e não se ligava muito para idade nessa época. Quem tinha dinheiro tentava viver à custa das pessoas que tinham conseguido sobreviver a esses primeiros anos do pós-guerra. Ela se casou com 11 anos.
Engoli aquela informação a seco. A senhora Makia continuou e Nagata tomou fôlego para continuar a traduzir para mim.
_ “Ela passou a morar com o marido na cidade de Ashikaga, na província de Toshigue-ken ao norte de Tóquio. 25 anos haviam se passado quando o marido dela faleceu de problemas no coração. Com dinheiro do marido falecido ela voltou para morar na região onde tinha nascido, mas estava tudo mudado. Onde antes era uma fazenda de plantação de arroz, agora ficava o prédio de condomínios onde nós estamos morando.”
_ Desculpe interromper, Makia sama, mas o que isso tem haver com as aparições e coisas estranhas que estão acontecendo por lá?
Eu fui muito grosseiro, mas ela parece ter entendido a pergunta sem que Nagata precisasse traduzir. Ela colocou uma caixa preta de madeira toda decorada com entalhes dourados formando o desenho de uma velha cerejeira em cima da pequena mesa de centro. Ao abrir, eu senti o mesmo arrepio aterrorizante da noite da aparição. Dentro da caixa havia fotos amareladas antigas. Ela não precisou dizer mais nada. Nas fotos aparecia ela com a mãe, o irmão pequeno e o pai. Era o pai que nós tínhamos visto naquela noite. Havia outra foto foi mais desconcertante. Era a foto dele com o uniforme militar que nós tínhamos visto ele usando.



O medo tomou conta, tanto de mim quanto de Nagata que tinha perdido a fala e começara a tremer. Nisso a senhora Makia ofereceu duas xícaras de chá quente. Quando conseguimos parar de tremer ela continuou a falar e Nagata a traduzir.
_ “Ela procurou descobrir se havia alguma pista dos corpos das pessoas que moravam ali. E descobriu que o governo local da época apenas mandou passar tratores passarem por cima e jogar terra. Ela tentou conseguir uma autorização da prefeitura a uns 10 anos para realizar escavações em busca dos corpos de sua família, mas já haviam construído esses prédios e o governo local não iria permitir isso, pois se ela encontrasse evidencias de que o terreno era da família dela, a prefeitura deveria pagar indenização a sua única herdeira.” Nagata tomou fôlego e continuou.
_ “Desde que ela passou a morar aqui, as aparições começaram a acontecer dentro dos apartamentos. Cada vez mais freqüentes e cada vez mais fortes. Foi difícil para os donos do prédio conseguirem inquilinos que morassem ali. E ele passou a alugar para trabalhadores brasileiros.”



_ Agora eu entendo por que o nosso aluguel era tão barato. Disse para Nagata com um tom indignação. _ Vamos embora hoje daquele lugar!
Nesse momento, a velha senhora puxou outra caixa de madeira um pouco maior e abriu para nós. Havia uma enorme quantidade de dinheiro lá dentro. Eu troquei olhares com Nagata sem entender o que significava isso. Ela começou a falar e o queixo de Nagata pareceu ir ao chão. Ele virou balbuciando para mim, ainda sem acreditar no que ela havia dito.
_ Ela disse que se nós a ajudarmos a encontrar os restos mortais do pai dela ou algo pessoal da família dela, ela da essa caixa de dinheiro para a gente.
_Hahahaha... Você tá brincando? A gente nem vai entrar lá mais. Não obrigado.
_ Ricardo, tem quase um milhão de ienes ali.
Eu parei de rir. Um milhão de ienes significava meio milhão para cada um. E com meio milhão eu não só pagava as minhas contas no Brasil como poderia voltar para estudar e fazer faculdade sem ficar me preocupando com dinheiro. Tive que respirar fundo e pensar. Aquilo significava voltar mais cedo para casa, ver família e amigos novamente.
_ Mesmo que nós aceitássemos, como faríamos isso? Se a prefeitura proibiu isso, basta eu dar uma picaretada do lado de fora do prédio que a policia aparece para me extraditar de volta para o Brasil sem chance de defesa.
Nagata havia traduzido o que eu disse para ela e sem alterar a voz, a velha senhora se pois a falar.
_”O prédio tem dois andares e é uma construção de madeira muito antiga. Ela disse que as madeiras do chão do térreo são soltas e por baixo é solo de terra. Se nós tirarmos as tatames de palha do chão, podemos remover as tábuas de madeira e cavar por baixo de nossos apartamentos.” Nagata parecia estar bêbado agora. Eu não podia culpá-lo. Essa era com certeza a proposta mais bizarra que alguém já havia feito para mim. O velho Nagata até estava com os olhos maiores quando olhava a caixa de dinheiro.
_ Shoto mate okudassai, Obassama. (Um momento, por favor senhora).
_ Ricardo. Nós podemos fazer isso. -Disse ele sem tirar o olho do dinheiro- Ela só precisa de uma prova, qualquer coisa que nós encontrarmos ali vai ser lucro. Nós começamos a desmontar o meu apartamento e cavamos por lá. E quando nós...
_ Espera ai gênio! E onde o senhor pensa em dormir com o seu apartamento sem chão?
_ No seu apartamento, oras!
Eu já estava xingando ele de vadia por largar tudo que o estava incomodando por dinheiro. Agora eu tinha certeza: ele era praticamente uma vadia velha folgada. A senhora Makia tornou a falar e Nagata a traduzir.
_ ”Ela não se preocupa com provas de que o terreno é da família dela. Ela apenas gostaria de achar algo que pudesse enterrar em uma cerimônia religiosa fúnebre. Para tentar dar descanso a alma de seu pai.”
Pode parecer idiota, mas foi somente nesse momento que ela havia conseguido me convencer a aceitar esse pedido bizarro.
Na tarde seguinte, depois que voltamos do trabalho, demos inicio ao plano. Tiramos todos os tatames de palha do apartamento de Nagata. Cheiravam a mofo e algo fedido como palha molhada ou algo do gênero. Fiquei espantado quando percebi que a fala da velha senhora era verdade. As tábuas do assoalho estavam soltas e não havia nenhum tipo de forração ou vedação por baixo da madeira era terra úmida e só. Levamos os tatames um a um para o lado de fora do corredor e deixamos encostados na parede. Quando o sindico veio, ele não fez muitos questionamentos. Era comum os moradores tirarem os colchões de palha que cobriam o chão de vez em quando para evitar o mofo e naquele caso parecia ninguém fazia aquilo a anos.
Quando escureceu trancamos o apartamento e Nagata foi com suas coisas para meu. O velho tinha reclamado de chamar o idiota do Nagata para dormir no nosso apartamento, mas eu havia argumentado que depois que fizéssemos a limpeza no apartamento dele, ele iria ajudar a fazer no nosso. O velho Yamada bufou contrariado, pegou suas coisas e foi para o Sunâco (uma espécie de boate que os operários iam para beber e ficar apalpando as imigrantes filipinas clandestinas), com certeza ele ia passar a noite por lá.
Depois da janta fomos dormir.
Acordamos com um tremor no apartamento inteiro. Nagata incrédulo gritou para mim “Terremoto, terremoto!”. Corremos para debaixo do batente da porta quando tudo parou. Tentamos sair para ver se havia acontecido um estrago maior no prédio. Mas a porta não abria. A chave parecia estar emperrada. Não conseguíamos entender o que estava acontecendo, quando olhamos para trás e aquele homem transparente nos observava de perto.
Meu coração disparou e eu tinha certeza que ia ter um infarto. Nagata desmaiou e ficou amontoado no cubículo que dava acesso a porta emperrando de vez a saída. FILHA DA...! FILHA DA...! Chutei o corpo do corno, mas aquela franga velha não acordava. Grudei de costas na parede sem me aproximar, tentando controlar a tremedeira do meu corpo e o coração que eu tinha certeza que ia sair pela boca.
A figura do pai da senhora Makia esticava os braços azulados transparentes, com uma cara de desespero, como se precisasse de ajuda. Eu não conseguia mover o meu corpo, ele não me obedecia mais, estava com todos os músculos do meu corpo duros de medo. Ele veio flutuando bem próximo de mim e eu senti o ar esfriar cada vez mais. Os calafrios não paravam de subir pela minha espinha. Ele não me tocou. Apenas movia a boca como se tentasse dizer algo sem soltar som algum, apontando os braços para a parede contrária do quarto, onde era o apartamento de Nagata. Subitamente ele olhou para trás, como se algo terrível estivesse chegando. E um forte clarão azulado irradiou-se dentro do apartamento fazendo com que ele desaparece-se novamente.
Depois disso, a chave destravou e tudo voltou ao normal. Demorei uns dez minutos para me recompor e tentar parar de tremer. Depois de conseguir me levantar e respirar fundo fui até o fundo do quarto observar. Não tinha acontecido nada de especial, era como se nada tivesse acontecido. Voltei para a porta e dei mais um chute na bunda do Nagata e ele não reagiu. Olhei o pulso dele e estava tudo bem, o cachorro ainda estava vivo. Fui até a torneira da pia, enchi uma jarra com água e joguei.
A cena foi engraçada apesar da situação. Ele deu um pulo dando gritinhos histéricos que nem uma menininha de voz fina, grudado na parede. Foi arrastando suas costas apoiadas na parede até chegarem a porta que estava destrancada. Ele rolou de costas no chão frio do corredor e depois saiu correndo e tropeçando nos tatames do apartamento dele que havíamos deixado encostados nas paredes do corredor.
Demorou uns 40 minutos para que a polícia trouxesse Nagata de volta para o apartamento. Quando eles pararam na frente eu estava sentado do lado de fora da entrada do corredor. A senhora Makia percebera que algo havia acontecido e veio do portão e sua casa para nos auxiliar. Ela segurou o braço de Nagata e o conduziu para o interior de sua casa. Eu os acompanhei.
Nagata fedia demais. Um cheiro terrível vinha de suas roupas;
_ O que aconteceu com você? Por onde esteve?
_ Eu não sei. Corri o máximo que pude. Quando não agüentei mais eu cai no chão para tomar fôlego. Foi quando os policiais vieram me perguntar se eu estava bem. E me trouxeram para cá depois de verem meus documentos.
_ Mas por que o mau cheiro?
_ Acho que eu me borrei todo... disse com a voz quase sumindo.
_ Como? Não entendi?
_ VOCÊ É SURDO? EU CAGUEI NAS CALÇAS! QUEM NÃO FARIA ISSO DEPOIS DAQUELA MERDA QUE NÓS PASSAMOS, PORRA!
_ Desculpe. Eu ainda estou tentando pensar no que aconteceu.
A velha senhora levou Nagata para o banheiro para que ele pudesse se lavar. Eu ainda tentava refletir sobre o ocorrido. Um pensamento veio a minha mente. Ele não queria nos atacar, estava querendo mostrar algo. Alguma coisa estava ali naquela parede, ou embaixo dela.
A senhora Makia apareceu novamente com uma xícara de chá quente e uma bandeja de doces coloridos. Agradeci, ela saiu e voltou trazendo edredons e cobertores para que pudéssemos passar a noite naquela sala. Ela poderia não saber o que havia acontecido conosco, mas sabia que seria difícil convencer Nagata a entrar de novo no apartamento naquela noite.
Veio a manhã seguinte. Fomos juntos ao apartamento pegar nossas coisas e uniformes para irmos trabalhar. Nagata não falava nada. Quando chegamos na van, os outros funcionários começaram a tirar sarro de nós dois.
_ Foi só o Nagata se mudar para o apartamento do Ricardo san, que a noitada foi ótima. A gente só ouvi os gritinhos de prazer dessa bicha velha.
_ Vai se ferrar. Disse seco Nagata.
A tarde veio. Voltamos depois de um dia intenso de trabalho na firma. Quando todos se despediram. Voltei para Nagata e disse:
_ Vamos, temos muito trabalho a fazer antes que escureça.
_ VOCÊ ESTA LOUCO?!?!?! EU NÃO VOU FAZER MAIS PORCARIA NENHUMA. AQUILO É COISA DO ALÉM. MACUMBA BRAVA. NEM QUE A VACA TUSSA EU ENTRO NAQUELE LUGAR.
_ Nem por meio milhão? Eu disse com um sorriso irônico.
_ Você tinha que dizer isso, né? Ele respirou fundo ergueu a cabeça e disse: Vamos lá!
Eu agora tinha certeza. Ele era pior que uma vadia de rua. Fazia qualquer coisa por dinheiro.
Quando entramos no apartamento pegamos as ferramentas e começamos tirar as tábuas que já se encontravam soltas. Havia um espaço de um metro e meio dali até o chão de terra. Coloquei uma roupa velha e começamos a cavar em silêncio. A cada momento parecia durar uma eternidade. Cavamos o mais rápido que podíamos, queríamos sair dali antes que escurecesse. Fiquei impressionado com a velocidade que Nagata pegava os baldes de terra e se livrava dela. Quando perguntei onde ele estava colocando toda aquela terra, ele disse que estava colocando no vão que havia entre o corredor lateral do prédio e a casa vizinha. Já havíamos cavado cerca de quase dois metros do chão e nada havia aparecido alem dos canos enterrados. Escureceu e não fazia sentido continuar. Foi quando as luzes se apagaram e um tremor intenso atingiu o apartamento. Eu estava no buraco e quando olhei para cima Nagata tinha desaparecido. Aposto que aquela franga estava correndo de novo em direção a cidade e tinha me abandonado ali. Estava tudo escuro um esqueleto podre surgiu no buraco ao meu lado.
Minha reação foi instantânea. Gritei e girei a pá com toda a força em direção aquela caveira podre. Não acertei nada, no lugar disso eu tinha arrebentado um cano que começou a espirrar água gelada com força. Enchendo o buraco com água e transformando em uma imensa poça de lama. O terror de estar no escuro numa poça de lama gelada com uma assombração rondando, me fez perceber que eu nunca mais iria ver minha família no Brasil. Comecei a perder toda a esperança de sair daquele lugar.
Eu tentei me apoiar nas laterais da parede do buraco e por mais força que eu fizesse, aquilo acabava se desmanchando em lama. O frio começava a me afetar mais que o medo, meu corpo não conseguia parar de tremer e eu comecei a ficar paralisado. Não tinha mais jeito. Era o meu fim.
Foi quando a água do cano parou de jorrar e a lama começou a se acalmar na altura de minhas coxas. A luz do apartamento voltara a acender e quando consegui olhar para cima e vi um vulto contra a luz, que parecia mais forte por causa da escuridão em que eu estava.
_ Ricardo! Você está bem?
_ Onde você estava Nagata?
_ Ué? Eu disse que ia ao banheiro! Aconteceu alguma coisa? Nossa?!?! Que lamaceira é essa?
_ Jura que você não ouviu nada? E a luz apagando?
_ Ouviu o que? Do que você esta falando? Como foi que o cano do reservatório estourou? Eu estou fora a...
Ele ficou sem voz. Apenas apontando o dedo para a parte do buraco que estava mais embaixo da parede que dividia nossos apartamentos. Quando me virei, a surpresa. Havia dois esqueletos incrustados na terra.
Eu escorreguei de susto na mesma hora. Fui engatinhando de costa no sentido contrário, olhando fixamente para os esqueletos sujos de lama e restos de um tecido podre que milagrosamente ainda cobriam os corpos. Eu não tinha visto por causa da escuridão. Provavelmente a água tinha retirado a terra em volta dos corpos. Eu nunca iria conseguir achar nada ali porque estava cavando para baixo e não para os lados.
_ Da para me tirar daqui?
_ É... aaaam... Claro! Vou pegar uma corda na van e já venho.
Quando eu ia dizer para ele não me deixar sozinho ali já era tarde demais. Ele já tinha desaparecido. Foi quando eu comecei a observar os esqueletos que estavam logo ali na minha frente. Não tinham cheiro de cadáver, apenas de terra molhada. Alguma coisa estava chamando a minha atenção, mas eu não conseguia raciocinar direito.
Quando eu respirei fundo por causa do frio que estava fazendo naquela droga de buraco comecei a entender o significado daqueles corpos. Eles eram os corpos da mãe e do irmão pequeno da senhora Makia. A posição em que se encontravam dava para tentar imaginar o que havia acontecido. O esqueleto maior estava sentado com as pernas cruzadas, abraçando o esqueleto menor, protegendo ele no colo. Apenas uns pedaços de tecido do velho quimono ainda restavam e quando eu parei para observar melhor percebi que os restos de tecido eram iguais aos tecidos dos quimonos decorados que apareciam nas fotos da senhora Makia.
O pai dela precisava de ajuda para salvar os restos de sua família e por isso não conseguia descansar em paz. Imagino que o tormento terrível era para ele tentar chegar o mais rápido possível ao porão da casa onde estava o resto de sua família, mas quando estava no meio do caminho ele não deve ter tido sorte. Os aviões norte americanos acabaram com aquela região, mesmo não sendo nenhum ponto militar importante ou que possuísse fabricas de grande porte. Foi um massacre da população civil em grande escala. Mais tarde nas últimas conversas que tive com a Makia san. Ela me contara que seu pai estava voltando do combate no Pacifico, um dos poucos que conseguiram retornar para casa naqueles últimos momentos da guerra.
Assim que Nagata voltou, ele jogou a corda me retirou dali. Chamamos a senhora Nagata para ela ver o que encontramos e quando ela viu começou a chorar e soluçar baixinho. Todos ficamos em silêncio.
Na manhã seguinte todas as redes locais estavam na porta do velho prédio de madeira para noticiar o achado. Veja a história no noticiário do meio dia:

“Corpos de família desaparecida ao final da guerra são encontrados por acidente na cidade de Obu-Shi, província de Aichi-ken, por causa de um acidente causado por um cano velho estourado de um antigo prédio. Autoridades devem fazer os exames de reconhecimento de possível familiar ainda vivo, mais detalhes na edição das 8:00h”

Medíocre. Mas era assim que deveria ser.
A ultima vez que tive contato com a Senhora Makia foi na cerimônia fúnebre que ela tinha feito para a mãe e seu irmão pequeno. Fiquei surpreso, porque mesmo ela morando sozinha, sua família era imensa. Ela havia me puxado para dentro de uma sala fechada para no local onde era o velório. De uma mesa grande abriu a gaveta com uma chave e retirou a caixa com o dinheiro. Olhei para ele baixei a cabeça, agradeci e empurrei a caixa de volta. Disse em meu japonês enrolado que era melhor ela cuidar de seu negócios e viver sua aposentadoria de forma mais sossegada. Ela sorriu. Retirou um envelope robusto do montante e disse em um português muito enrolado.
_ Para seus estudos, Ricarudo san! Gamba te, né!
_ Domo arigato, obassama.
Voltei para o Brasil ao final disso tudo. Minhas aventuras em terras distantes tinham me dado muita coisa importante. Principalmente a capacidade de me maravilhar com o desconhecido e a certeza de que mistérios fantásticos ainda estavam por serem descobertos. Quanto a Nagata, nunca mais o vi. Soube que ele pegou o dinheiro sem pensar duas vezes e foi morar no Sunaco, até onde o dinheiro conseguisse bancar.
Quando olhava o céu pela janela do Avião, tirei o envelope do bolso do paletó. Tinha dinheiro suficiente para eu poder estudar e entrar na faculdade. Havia algo que me chamara a atenção dentro envelope que eu não notara antes. Tinha 3 fotos antigas. Todas com mensagens de agradecimento. Uma da senhora Makia, outra da sua família com ela aparecendo pequena e a ultima foto de seu pai em uniforme militar, com o rifle do lado. O arrepio voltara a percorrer minha coluna novamente.


Eu e Nagata, em frente ao castelo de Nagóya, duas semanas antes do incidente.

O Conto acima é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Viva a infamia

Por um impulso incontrolável de escrever, sem nenhuma preocupação com a crítica literária. Abri esse espaço para todos. Independente do gênero literário e de qualquer outra classificação. Liberdade é a palavra de ordem.

Sejam todos bem vindo a infâmia.