A presente resenha fez parte do trabalho final da disciplina de Cultura e Educação Afro-brasileira e Indígena, ministrado pela Prof.ª Dr. ª Mille Caroline Rodrigues Fernandes (Makyesi), professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
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Jota
Mombaça é uma artista interdisciplinar cujo trabalho se desenvolve em uma
variedade de mídias. A matéria sonora e visual das palavras desempenha um papel
importante em sua prática, que frequentemente se relaciona à crítica
anticolonial e à desobediência de gênero. Seu trabalho foi apresentado em
diversos contextos institucionais, como a 32ª e 34ª Bienais de São Paulo (2016
e 2020/2021), a 22ª Bienal de Sydney (2020), a 10ª Bienal de Berlim (2018) e o
46º Salão Nacional de Artistas da Colômbia (2019). Atualmente, elas têm se
interessado em pesquisar formas elementares de sensorialidade, imaginação
anticolonial e a relação entre opacidade e autopreservação na experiência de
artistas trans racializados no mundo da arte global[1].
O Texto da escritora Jota Mombaça em
seu livro Não Vão Nos Matar Agora é um convite a reflexão sobre as violências
e as dinâmicas das experiências diaspóricas do ser que não se encontra e não se
enxerga dentro dos espaços sociais comuns. Onde essa visão equalizadora branca,
de um fundamentalismo cis gênero, eurocêntrica passam por um eterno exercício de
achatamento e aniquilação das diversidades. O que coloca sua fala em um ato
permanente de existência e resistência.
O livro é dividido em doze
capítulos, que se interconectam entre os vários ensaios que mesclam suas
vivências pessoais e análises críticas relacionadas aos posicionamentos e combate
a LGBTfobia e ao racismo estrutural, alternando textos de análise teórica com
produções de memória e ensaios ficcionais que buscam transmitir as diversas angústias
e agressões ao leitor, promovendo um incomodo constante e um reposicionamento
do leitor em suas diversas passagens.
O
início é marcado por carta a qual ela busca denunciar as diversas violências, objetivas
e subjetivas, contra todos aqueles que sofrem por não se encontrarem dentro desse
espectro social europeizante e cisgênero, processo esse que busca impor a todo
custo de uma lógica branca de padronização da sociedade.
Octavio Paz, em seu livro O
Labirinto da Solidão e Post Scriptum, colocava que para entender a natureza da
cultura e da identidade do povo mexicano, teve que se distanciar, morar nos EUA
como diplomata para compreender os aspectos e contrapontos de sua cultura
ancestral e de seu povo. Jota Mombaça inicia esse distanciamento antes mesmo de
sair do Brasil. Se entende como mulher travesti negra de pele clara, deixando
claro seu enquadramento dentro do colorismo e que isso não impede a sua atuação
dentro de uma luta antí-homofóbica e antirracista. Observa, com olhos de medo,
essa realidade antí-indígena, antinegra, colonialista e submissa ao
imperialismo, que se apresenta como uma realidade que se mascara pelas névoas
da mitologia da democracia racial e o ato de insistir em existir, apesar de
toda a brutalidade que a rodeia, evoca uma posição de resistência, reafirmando
sua existência em um ambiente de injustiças contínuas e sistêmicas. Escreve de
Portugal, de onde pontua seus olhares e observações sobre as questões decoloniais
e os enfrentamentos das relações de étnicas e de gênero. Não vão nos matar
agora porque já nos mataram e ainda assim, continuamos aqui.
Dessa forma justifica, chama pela vida
e coloca que aprendeu com Denise Ferreira da Silva, filosofa e artista brasileira,
que menos com menos dá mais, por isso clama para aqueles que persistem em suas
existências e que suas vidas negativadas se somam e se multiplicam à revelia. O
que se exprime nas numerações dos capítulos que vão se negativando no decorrer
da obra. Sem contestar o mundo, suas vidas persistem e buscam a beleza pelas suas
existências através das brechas e possibilidades.
Através
de um questionamento de uma amiga conhecida, apresenta o conceito de “quebra”,
o conjunto de forças que vão além dos ideais normativos de gênero, sujeito e coletividade.
A ideia de um movimento errático, abrupto e desordenado, que ao atravessar esse
véu de normatização de uma sociedade, como se arrebentasse um espelho e no
movimento desse espalhar dos cacos pudéssemos repensar uma forma de ser e de se
enxergar dentro da sociedade. Demonstra a necessidade de se ligar
emocionalmente as pessoas por uma conexão afetiva que sobreviva para além das
violências normatizadoras, que não esteja ligada a uma ideia de identidade
formada, mas pelo sujeito fragmentado que sobrevive a essa opressão do mundo e
se forma como individuo, reconhecendo em fragmentos de outras pessoas partes de
si mesmo.
Evidencia
uma verdade pulsão sobre a necessidade de escrever embora existam diversas barreiras
e violências. Em um formato de revolta e poesia, coloca-se em anunciação de que
suas vidas não podem desaparecer uma vez que elas, todas vítimas da violência cis,
se reconhecem na coletividade, se enxergando umas nas outras e se multiplicando
mesmo a contragosto do mundo. Passa a analisar questões relativas à questão do
lugar de fala. Partindo de um evento da inauguração de uma estátua do Padre
Antonio Vieira em Lisboa, coloca a questão da disparidade do número de obras críticas
sobre o antirracismo e o decolonialismo e as restrições de espaço para intelectuais
e artistas negros dentro desses espaços. Suas falas não serão censuradas, mas
seus corpos que evidenciam suas marcas de opressão não irão compartilhar dos
mesmos espaços e dos mesmos privilégios por essa aliança branca. Um processo de
adoção das produções e falas negras, feministas, trans e decoloniais, mas que regulam
essas vozes de forma parcial e minando as possibilidades de uma cisão dessa
dominância europeia cisgênera e branca na produção de narrativas. Deixa claro a
necessidade de se refletir sobre quais os limites da apropriação de discursos
antirracistas e decolonialistas sem uma ética que permite essas pessoas historicamente
privilegiadas não perpetuarem esse status quo de dominância branca colonial
eurocentrista.
A
autora aponta questões referentes a essa mercantilização que se configura como
uma forma de apropriação dos trabalhos de artistas que não se enquadram dentro
da normatização cis europeia, mas acaba se destinando apenas para o consumo de
audiências brancas e ricas em circuitos artísticos fechados como aponta a
autora. Esse controle do tempo da produção artística e dos temas das pautas
identitárias vem deixando claro como organizações estruturas de cunho
neoliberal estão atuando em diversos âmbitos que acabam transcendendo as esferas
dos mercados artísticos, pois é possível ver esse processo nos meios políticos,
econômicos e educacionais. Procurando nessa apropriação das pautas
tradicionalmente ligadas as lutas das identidades historicamente excluídas a uma
apropriação de conceitos como “responsabilidade social”, “diversidade” e
“inclusão”, para que ela limite determinados espaços de discussão e não possa produzir
as transgressões necessárias para além do status quo colonial. Formas de se estilhaçar
as subjetividades negras e indígenas, com uma apropriação do seu trabalho, como
indicada por Mombaça.
Como
efeito desse processo você tem a ansiedade construída como parte integrante
dessa metodologia, um resultado esperado e que se apresenta como um reflexo das
relações neoliberais dentro do mercado da arte no interior do próprio artista,
uma vez que introduz o controle do tempo dentro do espaço subjetivo de criação e
coloca essa pressão como mecanismo de sobrevivência interno do artista e suas inter-relações
com a realidade. Essa tensão e esse sofrimento descrito com tamanha precisão transparece
quando se coloca que:
“(...)o risco da
antecipação na forma de ansiedade patologizada é precisamente a captura da
intuição na cela da imaginação capturada, sua deterioração enquanto intuição
liberada em nome da reprodução da economia da ameaça como forma última de futuridade
social(...)” (MOMBAÇA,
2021, p.56);
dialoga
com as observações colocadas por Vladimir Safatle (SAFATLE, 2023):
“Podemos falar ‘instauração’
porque a força do neoliberalismo é performativa. Ela não atua meramente como
coerção comportamental, ao modo de uma disciplina que regula ideias,
identificações e visões de mundo. Ela molda nossos desejos e, nesse sentido, a
performatividade neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação
e produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de vida
por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios e não apenas o
que eles representam de si próprios. Se admitimos que uma forma de vida tende a
manter a sua unidade extraindo produtividade de suas contradições, determinadas
e indeterminadas, de acordo com estratégias provenientes do trabalho e do
mercado, do desejo e da linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais
da dimensão performativa da gestão neoliberal do sofrimento.”[2]
Mombaça
demonstra um texto evidenciando as formas de violência e destruição do Estado
brasileiro acerca das populações negras, pobres, travestis colocando não só exemplos
conhecidos das diversas violências sistêmicas construídas dentro de nossa
história, mas como as mentalidades foram moldadas de forma histórica e
estrutural na edificação de discursos ficcionais de poder. O domínio da
violência como ficção de poder, a justiça colocada como discurso de controle ficcional
do poder, que deixam transparecer um conjunto de valores que pautam as
construções de relações e como eles se reinventam e fazem suas atualizações do contexto
social branco. Evidencia contradições do movimento LGBTIA+ que busca uma
proteção do estado e da polícia na criminalização da homofobia, os maiores
responsáveis pelas mortes e extermínio das minorias dentro de território
nacional sem levar em conta os diversos marcadores sociais das populações que
se encontram em sistemas prisionais e que de alguma forma se encontram em
espectro da comunidade LGBT. São mecanismos que operam para uma política do
desejo, além da lei e que vão seguir em direção de preservação do agressor pois
esses organismos se encontram dentro de uma estrutura racista sistêmica de
distribuição da violência e do medo que está intrinsecamente marcado em seu
cerne desde a sua fundação. Essa violência está caracterizada tanto nas
instituições como dentro das existências individuais e subjetivas que elas
buscam apagar. Faz uma análise com relação ao monopólio da violência pela
questão da masculinidade cisgênera que não apenas as suas técnicas, ferramentas
e dispositivos, mas dos limites de suas definições, trazendo novas
significações para a violência racial praticada e suas formas de apropriação
por parte da comunidade LGBTQI+, como forma de defesa e de redistribuição dessa
violência difundida em todos os seus espectros.
Em seus ensaios finais do livro, faz
um vislumbre de um futuro de percepções de um Brasil totalitário que numa
ficção assustadoramente realística (ou apenas a realidade sem filtros), que
mostra a perseguição implacável e a questão da esperança na guerra pela
sobrevivência. E existe sobrevivência. Fala sobre a bailarina Ana Pi e sua
performance NoirBlue que transforma sua dança e seus movimentos como uma
representação e estratégia de luta e de fuga. Resistência e questionamentos
transformados em movimento e poesia. São episódios imaginativos que nos levam a
reflexão e um convite sobre as possibilidades de resistências e formas de criação
de espaços potenciadores de futuro.
Referências:
[1]
Biografia retirada do site: www.jotamombaca.com/contact.
Acesso em: 30 abr. 2025.
ALMEIDA,
Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo – Ed. Jandaíra.
2020.
AKOTIRENE,
Carla. Interseccionalidade. São Paulo – Ed.
Jandaíra. 2023.
CÁSSIO,
Fernando; AVELAR, Marina; TRAVITZKI, Rodrigo; NOVAES, Thais Andrea Furigo. Heterarquização
do Estado e a expansão das fronteiras da privatização da educação em São Paulo.
Educação & Sociedade, Campinas/SP, v. 41, e241711, 2020.
DEVULSKY,
Alessandra. Colorismo. São Paulo – Ed. Jandaíra. 2023.
MOMBAÇA,
Jota.
Não vão nos matar agora. 1. ed. – Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2021.
SAFATLE,
Vladimir. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.
Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2023.