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sábado, 10 de maio de 2025

Resenha do livro: NÃO VÃO NOS MATAR AGORA - DA ESCRITORA JOTA MOMBAÇA

 A presente resenha fez parte do trabalho final da disciplina de Cultura e Educação Afro-brasileira e Indígena, ministrado pela Prof.ª Dr. ª Mille Caroline Rodrigues Fernandes (Makyesi), professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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Jota Mombaça é uma artista interdisciplinar cujo trabalho se desenvolve em uma variedade de mídias. A matéria sonora e visual das palavras desempenha um papel importante em sua prática, que frequentemente se relaciona à crítica anticolonial e à desobediência de gênero. Seu trabalho foi apresentado em diversos contextos institucionais, como a 32ª e 34ª Bienais de São Paulo (2016 e 2020/2021), a 22ª Bienal de Sydney (2020), a 10ª Bienal de Berlim (2018) e o 46º Salão Nacional de Artistas da Colômbia (2019). Atualmente, elas têm se interessado em pesquisar formas elementares de sensorialidade, imaginação anticolonial e a relação entre opacidade e autopreservação na experiência de artistas trans racializados no mundo da arte global[1].

            O Texto da escritora Jota Mombaça em seu livro Não Vão Nos Matar Agora é um convite a reflexão sobre as violências e as dinâmicas das experiências diaspóricas do ser que não se encontra e não se enxerga dentro dos espaços sociais comuns. Onde essa visão equalizadora branca, de um fundamentalismo cis gênero, eurocêntrica passam por um eterno exercício de achatamento e aniquilação das diversidades. O que coloca sua fala em um ato permanente de existência e resistência.

            O livro é dividido em doze capítulos, que se interconectam entre os vários ensaios que mesclam suas vivências pessoais e análises críticas relacionadas aos posicionamentos e combate a LGBTfobia e ao racismo estrutural, alternando textos de análise teórica com produções de memória e ensaios ficcionais que buscam transmitir as diversas angústias e agressões ao leitor, promovendo um incomodo constante e um reposicionamento do leitor em suas diversas passagens.

O início é marcado por carta a qual ela busca denunciar as diversas violências, objetivas e subjetivas, contra todos aqueles que sofrem por não se encontrarem dentro desse espectro social europeizante e cisgênero, processo esse que busca impor a todo custo de uma lógica branca de padronização da sociedade.

            Octavio Paz, em seu livro O Labirinto da Solidão e Post Scriptum, colocava que para entender a natureza da cultura e da identidade do povo mexicano, teve que se distanciar, morar nos EUA como diplomata para compreender os aspectos e contrapontos de sua cultura ancestral e de seu povo. Jota Mombaça inicia esse distanciamento antes mesmo de sair do Brasil. Se entende como mulher travesti negra de pele clara, deixando claro seu enquadramento dentro do colorismo e que isso não impede a sua atuação dentro de uma luta antí-homofóbica e antirracista. Observa, com olhos de medo, essa realidade antí-indígena, antinegra, colonialista e submissa ao imperialismo, que se apresenta como uma realidade que se mascara pelas névoas da mitologia da democracia racial e o ato de insistir em existir, apesar de toda a brutalidade que a rodeia, evoca uma posição de resistência, reafirmando sua existência em um ambiente de injustiças contínuas e sistêmicas. Escreve de Portugal, de onde pontua seus olhares e observações sobre as questões decoloniais e os enfrentamentos das relações de étnicas e de gênero. Não vão nos matar agora porque já nos mataram e ainda assim, continuamos aqui.

            Dessa forma justifica, chama pela vida e coloca que aprendeu com Denise Ferreira da Silva, filosofa e artista brasileira, que menos com menos dá mais, por isso clama para aqueles que persistem em suas existências e que suas vidas negativadas se somam e se multiplicam à revelia. O que se exprime nas numerações dos capítulos que vão se negativando no decorrer da obra. Sem contestar o mundo, suas vidas persistem e buscam a beleza pelas suas existências através das brechas e possibilidades.

Através de um questionamento de uma amiga conhecida, apresenta o conceito de “quebra”, o conjunto de forças que vão além dos ideais normativos de gênero, sujeito e coletividade. A ideia de um movimento errático, abrupto e desordenado, que ao atravessar esse véu de normatização de uma sociedade, como se arrebentasse um espelho e no movimento desse espalhar dos cacos pudéssemos repensar uma forma de ser e de se enxergar dentro da sociedade. Demonstra a necessidade de se ligar emocionalmente as pessoas por uma conexão afetiva que sobreviva para além das violências normatizadoras, que não esteja ligada a uma ideia de identidade formada, mas pelo sujeito fragmentado que sobrevive a essa opressão do mundo e se forma como individuo, reconhecendo em fragmentos de outras pessoas partes de si mesmo.

Evidencia uma verdade pulsão sobre a necessidade de escrever embora existam diversas barreiras e violências. Em um formato de revolta e poesia, coloca-se em anunciação de que suas vidas não podem desaparecer uma vez que elas, todas vítimas da violência cis, se reconhecem na coletividade, se enxergando umas nas outras e se multiplicando mesmo a contragosto do mundo. Passa a analisar questões relativas à questão do lugar de fala. Partindo de um evento da inauguração de uma estátua do Padre Antonio Vieira em Lisboa, coloca a questão da disparidade do número de obras críticas sobre o antirracismo e o decolonialismo e as restrições de espaço para intelectuais e artistas negros dentro desses espaços. Suas falas não serão censuradas, mas seus corpos que evidenciam suas marcas de opressão não irão compartilhar dos mesmos espaços e dos mesmos privilégios por essa aliança branca. Um processo de adoção das produções e falas negras, feministas, trans e decoloniais, mas que regulam essas vozes de forma parcial e minando as possibilidades de uma cisão dessa dominância europeia cisgênera e branca na produção de narrativas. Deixa claro a necessidade de se refletir sobre quais os limites da apropriação de discursos antirracistas e decolonialistas sem uma ética que permite essas pessoas historicamente privilegiadas não perpetuarem esse status quo de dominância branca colonial eurocentrista.

A autora aponta questões referentes a essa mercantilização que se configura como uma forma de apropriação dos trabalhos de artistas que não se enquadram dentro da normatização cis europeia, mas acaba se destinando apenas para o consumo de audiências brancas e ricas em circuitos artísticos fechados como aponta a autora. Esse controle do tempo da produção artística e dos temas das pautas identitárias vem deixando claro como organizações estruturas de cunho neoliberal estão atuando em diversos âmbitos que acabam transcendendo as esferas dos mercados artísticos, pois é possível ver esse processo nos meios políticos, econômicos e educacionais. Procurando nessa apropriação das pautas tradicionalmente ligadas as lutas das identidades historicamente excluídas a uma apropriação de conceitos como “responsabilidade social”, “diversidade” e “inclusão”, para que ela limite determinados espaços de discussão e não possa produzir as transgressões necessárias para além do status quo colonial. Formas de se estilhaçar as subjetividades negras e indígenas, com uma apropriação do seu trabalho, como indicada por Mombaça.

Como efeito desse processo você tem a ansiedade construída como parte integrante dessa metodologia, um resultado esperado e que se apresenta como um reflexo das relações neoliberais dentro do mercado da arte no interior do próprio artista, uma vez que introduz o controle do tempo dentro do espaço subjetivo de criação e coloca essa pressão como mecanismo de sobrevivência interno do artista e suas inter-relações com a realidade. Essa tensão e esse sofrimento descrito com tamanha precisão transparece quando se coloca que:

 

“(...)o risco da antecipação na forma de ansiedade patologizada é precisamente a captura da intuição na cela da imaginação capturada, sua deterioração enquanto intuição liberada em nome da reprodução da economia da ameaça como forma última de futuridade social(...) (MOMBAÇA, 2021, p.56);

 

dialoga com as observações colocadas por Vladimir Safatle (SAFATLE, 2023):

 

“Podemos falar ‘instauração’ porque a força do neoliberalismo é performativa. Ela não atua meramente como coerção comportamental, ao modo de uma disciplina que regula ideias, identificações e visões de mundo. Ela molda nossos desejos e, nesse sentido, a performatividade neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de vida por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios e não apenas o que eles representam de si próprios. Se admitimos que uma forma de vida tende a manter a sua unidade extraindo produtividade de suas contradições, determinadas e indeterminadas, de acordo com estratégias provenientes do trabalho e do mercado, do desejo e da linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais da dimensão performativa da gestão neoliberal do sofrimento.”[2]

           

Mombaça demonstra um texto evidenciando as formas de violência e destruição do Estado brasileiro acerca das populações negras, pobres, travestis colocando não só exemplos conhecidos das diversas violências sistêmicas construídas dentro de nossa história, mas como as mentalidades foram moldadas de forma histórica e estrutural na edificação de discursos ficcionais de poder. O domínio da violência como ficção de poder, a justiça colocada como discurso de controle ficcional do poder, que deixam transparecer um conjunto de valores que pautam as construções de relações e como eles se reinventam e fazem suas atualizações do contexto social branco. Evidencia contradições do movimento LGBTIA+ que busca uma proteção do estado e da polícia na criminalização da homofobia, os maiores responsáveis pelas mortes e extermínio das minorias dentro de território nacional sem levar em conta os diversos marcadores sociais das populações que se encontram em sistemas prisionais e que de alguma forma se encontram em espectro da comunidade LGBT. São mecanismos que operam para uma política do desejo, além da lei e que vão seguir em direção de preservação do agressor pois esses organismos se encontram dentro de uma estrutura racista sistêmica de distribuição da violência e do medo que está intrinsecamente marcado em seu cerne desde a sua fundação. Essa violência está caracterizada tanto nas instituições como dentro das existências individuais e subjetivas que elas buscam apagar. Faz uma análise com relação ao monopólio da violência pela questão da masculinidade cisgênera que não apenas as suas técnicas, ferramentas e dispositivos, mas dos limites de suas definições, trazendo novas significações para a violência racial praticada e suas formas de apropriação por parte da comunidade LGBTQI+, como forma de defesa e de redistribuição dessa violência difundida em todos os seus espectros.

            Em seus ensaios finais do livro, faz um vislumbre de um futuro de percepções de um Brasil totalitário que numa ficção assustadoramente realística (ou apenas a realidade sem filtros), que mostra a perseguição implacável e a questão da esperança na guerra pela sobrevivência. E existe sobrevivência. Fala sobre a bailarina Ana Pi e sua performance NoirBlue que transforma sua dança e seus movimentos como uma representação e estratégia de luta e de fuga. Resistência e questionamentos transformados em movimento e poesia. São episódios imaginativos que nos levam a reflexão e um convite sobre as possibilidades de resistências e formas de criação de espaços potenciadores de futuro.

 

Referências:

 

[1] Biografia retirada do site: www.jotamombaca.com/contact. Acesso em: 30 abr. 2025.

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo – Ed. Jandaíra. 2020.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo – Ed. Jandaíra. 2023.

CÁSSIO, Fernando; AVELAR, Marina; TRAVITZKI, Rodrigo; NOVAES, Thais Andrea Furigo. Heterarquização do Estado e a expansão das fronteiras da privatização da educação em São Paulo. Educação & Sociedade, Campinas/SP, v. 41, e241711, 2020.

DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo – Ed. Jandaíra. 2023.

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. 1. ed. – Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2021.

SAFATLE, Vladimir. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2023.

 



[1] Biografia retirada do site www.jotamombaca.com/contact

[2] SAFATLE, Vladimir. NEOLIBERALISMO COMO GESTÃO DO SOFRIMENTO PSIQUICO. Editora Autêntica, BH, 2023. P. 11